Robert
de Herte[1]
Numerosos
espíritos tristes queixam-se hoje de que "não existe mais moral".
Curiosa queixa. Mais moral? Mas ela existe hoje mais do que nunca. A moral
invade tudo em nossos dias. Mas não é mais a mesma.
É
verdade que muitos de nossos contemporâneos se consideram libertos de toda
regra moral. Aqueles que lhes fazem a lição evitam "fazer a moral".
Eles se exprimem tomando a precaução de dizer que seus julgamentos não são
inspirados pela moral. Ao termo "moral", que traz com ele conotações
religiosas que muitos julgam envelhecidas, prefere-se, aliás, o termo
"ética", que parece melhor convir a uma sociedade laica, ainda que a
origem etimológica de ambas as palavras seja a mesma (mores e ethos) e ainda
que, a rigor, a ética não saberia ter um alcance individual.
Não
há dúvida de que a moral tradicional se perde. Mas outra a substitui. A antiga
moral prescrevia regras individuais de comportamento: a sociedade se portaria
melhor se os indivíduos que a compõem se comportassem bem. A nova moral quer
moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos. A antiga moral
dizia às pessoas aquilo que elas deveriam fazer; a nova moral descreve aquilo
que a sociedade deve se tornar. Não são mais os indivíduos que devem se conduzir
de modo direito, mas é a sociedade que deve se tornar mais "justa". É
que antiga moral era subordinada ao bem, enquanto a nova é subordinada ao
justo. O bem realça a ética das virtudes; o justo, uma concepção de Justiça,
ela mesma colorida de uma forte impregnação moral. Mesmo quando elas pretendem
permanecer "neutras" quanto à escolha de valores, as sociedades
modernas aderem a esta nova moral. Elas são simultaneamente ultrapermissivas e
hipermorais.
O
fundo das coisas é o que Max Weber chamava de a lógica do dever-ser. A
Antiguidade vivia em comunhão do Ser, a modernidade nascente reclama-se a do
dever ser. Em termos simples: o mundo deve se tornar uma coisa diferente
daquilo que ele foi até agora. Ele deve ser transformado para se tornar
"mais justo". Ele deve ser reconstruído segundo um projeto saído de
uma crença antiga ou da razão moderna. A justiça e o direito não definem mais
uma relação de equidade entre as pessoas, mas exprimem eles também um
dever-ser. Todo social é assim reinterpretado à luz desse dever-ser, que não
faz nenhum caso da natureza das coisas e dos seres.
Na
base do dever-ser, encontra-se uma recusa tal e qual ele é. Essa recusa, de
certa maneira é também um "não" à vida. "Mundus est
imuuundus", dizia Santo Agostinho, é preciso pois transformá-lo,
corrigi-lo, para satisfazer às exigências divinas dizem uns, para fazer frente
à necessidade histórica pretendem outros. Esta vontade de reconstruir o mundo,
ou ainda de restaurá-lo (tikkun[2]),
remonta à Bíblia, que nos diz que o mundo é imperfeito, que ele é atingido por
uma menos valia. Toda a ideologia do progresso, todo o utopismo das Luzes
representam disso a versão profana: sob hábitos seculares (a felicidade
substitui a salvação, o além cede lugar ao amanhã), é ainda e sempre a velha fé
messiânica e quiliástica[3]
na marcha irresistível da história em direção ao seu final (movimento calcado
sobre uma auto supressão) que está em construção. O Progresso é esta lenta
melhora do mundo, chamado a progredir de maneira unitária em direção a dias
melhores. "Substituí a salvação cristã pela fé no progresso, diz Pierre
Legendre, e obtereis o credo comercial do ocidente planetário".
A religião cristã é,
desde o início, desejada como constitutiva de uma "comunhão universal
real" (Pierre Manent), a república Cristã. Os teóricos das Luzes asseguram
que é apoiando-se sobre suas próprias faculdades, e não observando os preceitos
de Deus, que os homens asseguraram sua salvação e chegaram a criar a sociedade
perfeita, ao menos a sociedade definitiva, "final". Mas a própria ideia
de um movimento da história que se oriente nessa direção lhes vem de uma
religião que eles acreditam haverem abolido, ainda que não percebam que ela se
torna assim mais operante que nunca. Como diz John Gray após muitos outros, a
começar por Karl Löwith, as Luzes se limitam a reciclar a crença segundo a qual
a história é a narrativa da salvação da humanidade. Gray mostra que esta crença
se encontra tanto no comunismo stalinista quanto no neoconservadorismo
americano, que acredita que se pode chegar à sociedade perfeita "dando
livre curso à magia do mercado". "A despeito de suas pretensões a uma
racionalidade científica, o neoliberalismo tem raízes em uma interpretação
teleológica da história enquanto processo com um objetivo predeterminado, e
nisso, como em outras regiões, ele apresenta forte semelhança com o
Marxismo" (Black Mass. Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, Allen
Lane, London 2007).
Fundada sobre os
direitos subjetivos que os indivíduos teriam sobre o estado da natureza, a
ideologia dos direitos do homem, tornada a religião do nosso tempo, é antes de
tudo uma doutrina moral. Sua principal característica, escreve Marcel Gauchet, é
a de "enraizar-se naquilo que constitui efetivamente a pedra de toque do
legítimo e do ilegítimo no seio de nosso mundo, a fim de extrair daí, ao mesmo
tempo, uma grade de leitura e um programa para a ação coletiva [...]. A
ideologia dos direitos do homem decifra a realidade social à luz daquilo que
ela deveria ser [...] O único inconveniente desse imperialismo do dever-ser é
que ele não favorece a compreensão dos obstáculos que encontra em seu caminho,
ainda quando eles respondem manifestamente a fortes necessidades do ponto de
vista da existência comum. A única coisa que ele tem a dizer é que eles não
deveriam existir. Onde buscar sua finalidade? O afastamento da norma é
rejeitado nas trevas exteriores como um mal cuja condenação enquanto mal
supõe-se esgotar a compreensão. A ideologia dos direitos do homem traduz-se, em
outros termos, por uma invasão de moralismo, um moralismo ainda mais implacável
quando mobiliza as molas íntimas da afetividade” (« De la critique à
l’autocritique », in Le Débat, mai-août 2008, p. 159).
A nova ordem moral é
aquilo que Philippe Muray chama de o império do bem. Esse bem não é senão que
um bem derivado da prioridade do justo, um bem “objeto do desejo justo”. Esse
bem degenerou hoje em um novo moralismo — uma “moralina”, diria Nietzsche.
Paralelamente, o mal é negado como fazendo parte intrinsecamente da natureza do
homem, ainda que sendo reconhecido sob a forma extrema do “mal absoluto”, como
negação radical do bem dos direitos do homem.
A direita tem
frequentemente uma visão fundamentalmente ética da política, a esquerda, uma
visão moral. De um lado, Excalibur; de outro, as Beatitudes. Dois universos de
valores muito diferentes, mas também impolíticos (impróprios à compreensão daquilo
que é a política) um quanto outro. Hoje é a visão moral que domina. E é assim
que esta sociedade, que muitos julgam desprovida de toda moral, pode, em
realidade, achar-se portadora de uma moral de outro gênero, de um moralismo
onipresente que propagam os seus devotos, seus missionários e suas ligas da
virtude. Procuram-se libertinos.
Robert de Herte,
Éléments n°130, 2009.
Disponível em: http://grece-fr.com/?p=1550
[1] Pseudônimo de Alain de Benoist
quando assinava editorias da revista Éléments pour la civilisation
européenne (N. da T.).
[2] Tikkun significa
“correção”. Assim a chamada Tradição cabalística designa o caminho mais
benéfico para nosso crescimento espiritual (N. da T.).
[3] Milenarismo. Doutrina que
assegura que os predestinados ainda permaneceriam na Terra durante mil anos
após o julgamento final, no gozo de todos os prazeres (N. da T.).
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