quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A Ordem Moral

Robert de Herte[1]

Numerosos espíritos tristes queixam-se hoje de que "não existe mais moral". Curiosa queixa. Mais moral? Mas ela existe hoje mais do que nunca. A moral invade tudo em nossos dias. Mas não é mais a mesma.

É verdade que muitos de nossos contemporâneos se consideram libertos de toda regra moral. Aqueles que lhes fazem a lição evitam "fazer a moral". Eles se exprimem tomando a precaução de dizer que seus julgamentos não são inspirados pela moral. Ao termo "moral", que traz com ele conotações religiosas que muitos julgam envelhecidas, prefere-se, aliás, o termo "ética", que parece melhor convir a uma sociedade laica, ainda que a origem etimológica de ambas as palavras seja a mesma (mores e ethos) e ainda que, a rigor, a ética não saberia ter um alcance individual.

Não há dúvida de que a moral tradicional se perde. Mas outra a substitui. A antiga moral prescrevia regras individuais de comportamento: a sociedade se portaria melhor se os indivíduos que a compõem se comportassem bem. A nova moral quer moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos. A antiga moral dizia às pessoas aquilo que elas deveriam fazer; a nova moral descreve aquilo que a sociedade deve se tornar. Não são mais os indivíduos que devem se conduzir de modo direito, mas é a sociedade que deve se tornar mais "justa". É que antiga moral era subordinada ao bem, enquanto a nova é subordinada ao justo. O bem realça a ética das virtudes; o justo, uma concepção de Justiça, ela mesma colorida de uma forte impregnação moral. Mesmo quando elas pretendem permanecer "neutras" quanto à escolha de valores, as sociedades modernas aderem a esta nova moral. Elas são simultaneamente ultrapermissivas e hipermorais.

O fundo das coisas é o que Max Weber chamava de a lógica do dever-ser. A Antiguidade vivia em comunhão do Ser, a modernidade nascente reclama-se a do dever ser. Em termos simples: o mundo deve se tornar uma coisa diferente daquilo que ele foi até agora. Ele deve ser transformado para se tornar "mais justo". Ele deve ser reconstruído segundo um projeto saído de uma crença antiga ou da razão moderna. A justiça e o direito não definem mais uma relação de equidade entre as pessoas, mas exprimem eles também um dever-ser. Todo social é assim reinterpretado à luz desse dever-ser, que não faz nenhum caso da natureza das coisas e dos seres.

Na base do dever-ser, encontra-se uma recusa tal e qual ele é. Essa recusa, de certa maneira é também um "não" à vida. "Mundus est imuuundus", dizia Santo Agostinho, é preciso pois transformá-lo, corrigi-lo, para satisfazer às exigências divinas dizem uns, para fazer frente à necessidade histórica pretendem outros. Esta vontade de reconstruir o mundo, ou ainda de restaurá-lo (tikkun[2]), remonta à Bíblia, que nos diz que o mundo é imperfeito, que ele é atingido por uma menos valia. Toda a ideologia do progresso, todo o utopismo das Luzes representam disso a versão profana: sob hábitos seculares (a felicidade substitui a salvação, o além cede lugar ao amanhã), é ainda e sempre a velha fé messiânica e quiliástica[3] na marcha irresistível da história em direção ao seu final (movimento calcado sobre uma auto supressão) que está em construção. O Progresso é esta lenta melhora do mundo, chamado a progredir de maneira unitária em direção a dias melhores. "Substituí a salvação cristã pela fé no progresso, diz Pierre Legendre, e obtereis o credo comercial do ocidente planetário".

A religião cristã é, desde o início, desejada como constitutiva de uma "comunhão universal real" (Pierre Manent), a república Cristã. Os teóricos das Luzes asseguram que é apoiando-se sobre suas próprias faculdades, e não observando os preceitos de Deus, que os homens asseguraram sua salvação e chegaram a criar a sociedade perfeita, ao menos a sociedade definitiva, "final". Mas a própria ideia de um movimento da história que se oriente nessa direção lhes vem de uma religião que eles acreditam haverem abolido, ainda que não percebam que ela se torna assim mais operante que nunca. Como diz John Gray após muitos outros, a começar por Karl Löwith, as Luzes se limitam a reciclar a crença segundo a qual a história é a narrativa da salvação da humanidade. Gray mostra que esta crença se encontra tanto no comunismo stalinista quanto no neoconservadorismo americano, que acredita que se pode chegar à sociedade perfeita "dando livre curso à magia do mercado". "A despeito de suas pretensões a uma racionalidade científica, o neoliberalismo tem raízes em uma interpretação teleológica da história enquanto processo com um objetivo predeterminado, e nisso, como em outras regiões, ele apresenta forte semelhança com o Marxismo" (Black Mass. Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, Allen Lane, London 2007).

Fundada sobre os direitos subjetivos que os indivíduos teriam sobre o estado da natureza, a ideologia dos direitos do homem, tornada a religião do nosso tempo, é antes de tudo uma doutrina moral. Sua principal característica, escreve Marcel Gauchet, é a de "enraizar-se naquilo que constitui efetivamente a pedra de toque do legítimo e do ilegítimo no seio de nosso mundo, a fim de extrair daí, ao mesmo tempo, uma grade de leitura e um programa para a ação coletiva [...]. A ideologia dos direitos do homem decifra a realidade social à luz daquilo que ela deveria ser [...] O único inconveniente desse imperialismo do dever-ser é que ele não favorece a compreensão dos obstáculos que encontra em seu caminho, ainda quando eles respondem manifestamente a fortes necessidades do ponto de vista da existência comum. A única coisa que ele tem a dizer é que eles não deveriam existir. Onde buscar sua finalidade? O afastamento da norma é rejeitado nas trevas exteriores como um mal cuja condenação enquanto mal supõe-se esgotar a compreensão. A ideologia dos direitos do homem traduz-se, em outros termos, por uma invasão de moralismo, um moralismo ainda mais implacável quando mobiliza as molas íntimas da afetividade” (« De la critique à l’autocritique », in Le Débat, mai-août 2008, p. 159).

A nova ordem moral é aquilo que Philippe Muray chama de o império do bem. Esse bem não é senão que um bem derivado da prioridade do justo, um bem “objeto do desejo justo”. Esse bem degenerou hoje em um novo moralismo — uma “moralina”, diria Nietzsche. Paralelamente, o mal é negado como fazendo parte intrinsecamente da natureza do homem, ainda que sendo reconhecido sob a forma extrema do “mal absoluto”, como negação radical do bem dos direitos do homem.

A direita tem frequentemente uma visão fundamentalmente ética da política, a esquerda, uma visão moral. De um lado, Excalibur; de outro, as Beatitudes. Dois universos de valores muito diferentes, mas também impolíticos (impróprios à compreensão daquilo que é a política) um quanto outro. Hoje é a visão moral que domina. E é assim que esta sociedade, que muitos julgam desprovida de toda moral, pode, em realidade, achar-se portadora de uma moral de outro gênero, de um moralismo onipresente que propagam os seus devotos, seus missionários e suas ligas da virtude. Procuram-se libertinos.

Robert de Herte, Éléments n°130, 2009.
Disponível em:  http://grece-fr.com/?p=1550





[1] Pseudônimo de Alain de Benoist quando assinava editorias da revista Éléments pour la civilisation européenne (N. da T.).

[2] Tikkun significa “correção”. Assim a chamada Tradição cabalística designa o caminho mais benéfico para nosso crescimento espiritual (N. da T.).

[3] Milenarismo. Doutrina que assegura que os predestinados ainda permaneceriam na Terra durante mil anos após o julgamento final, no gozo de todos os prazeres (N. da T.).

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