sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Enamorar-se


“Alguém disse que o enamoramento é a sobrevalorização das diferenças marginais que existem entre uma mulher e outra (ou entre um homem e outro)”.

GINZBURG, Carlo. Huellas. Raíces de un paradigma indiciario. In: Tentativas. México: Universidade Michoacana de San Nicilás de Hidalgo, 2003, p. 93-155, p. 154.

 

Reflexão

Em toda parte e sempre, a vitória é dos otimistas, dos povos ou dos indivíduos que acreditam a priori que a verdade é bela e que a vida é boa. Toda a Antiguidade clássica teve deuses sorridentes; o próprio Egito, a mais grave das nações antigas, teve fé no triunfo final da luz sobre as trevas e no reino do bem. Ora, para assegurar-se de que o otimismo é um erro, é suficiente, parece-me, imaginar a duração infinita dos tempos passados. A vida universal é uma busca impaciente. Mas o que é um objetivo sempre perseguido e jamais alcançado, após quase uma eternidade de tentativas, senão uma quimera? E o que é uma perseguição sem objetivo, a não ser a pior das maldições? A própria duração do universo atesta, pois, a impossibilidade de seu feliz desfecho. Dizer que o mundo é um grupo imenso e uma eterna série de evoluções seguidas, invariavelmente, de dissoluções é dizer que tudo não é, em toda existência, senão esperança e decepção, fluxo incessante de esperança seguido de um inevitável refluxo. E é muito tarde para supor que surgisse jamais, enfim, em meio a tudo isso, algum esforço vitorioso, algum elã não enganoso, alguma vontade não decepcionante!

Gabriel Tarde

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Clóvis Bevilacqua e a gradação da responsabilidade: sugestão e contágio nos crimes cometidos pelas multidões


O que importava determinar, para Clóvis, nos crimes cometidos pelas multidões exaltadas era “até que ponto a suggestão do grupo, até que ponto o contagio da emoções modificou a individualidade daquelles que foram impellidos ao crime” (1896, p.50).

Temos aí, pois, um traço psicológico destacado pelo jurista, qual seja, uma espécie de suscetibilidade individual ao contágio, expressão, aliás, que se repete entre os autores. Indivíduos suscetíveis são identificados por Clóvis como os reconhecidamente perversos e os impressionáveis. Os primeiros “experimentados na pratica dos maleficios” (id., ibidem) se deixariam arrebatar  “até o delirio sanguinario” (id., ibid.); os segundos, “espiritos intensamente vibrateis, mas de conducta perfeitamente honesta, sentirão a vertigem do abysmo que se cava tenebroso em torno da mente agitada e nelle se precipitarão” (id., ibid.). Remetendo a exemplos citados por Sighele e Joly, que se adequariam a esses temperamentos, não deixa de fazer alusão à literatura, mencionando Là-Bas e fazendo referência à descrição grotesca de uma missa negra que se encontra nesta obra, sobre a qual comenta: “sordido sacrilegio e abjecta bacchanal, torcendo os espíritos, como se fossem frageis caniços e rojando os corpos no pó, revolvendo-os raivosamente na lama infecta de uma volúpia repellente” (id., p. 51).

Clóvis cita apenas o título: Là-bas. Em que pese não explicitar a autoria da obra, dificilmente não se trataria de outra que não o romance de Huysmans, publicado na França em 1891, que aborda o satanismo contemporâneo. A cena à qual faz referência é, muito provavelmente, esta:

Então Durtal sentiu-se estremecer, pois um vento de loucura sacudiu o salão. A aura de grande histeria seguiu o sacrilégio e curvou as mulheres; enquanto os meninos do coro incensavam a nudez do pontífice, algumas mulheres se precipitaram no Pão Eucarístico e, de rastros, agarraram-no, arrancaram-lhe pedaços úmidos, beberam e comeram essa divina imundície. [...] Era um barracão de hospício exasperado, uma estufa monstruosa de prostitutas e loucas. Então, enquanto as crianças do coro se aliavam aos homens, a dona da casa subia, retorcida, no altar, empunhando, com uma mão, a haste do crucifixo e, com a outra, o cálice, sob com as pernas nuas; ao fundo da capela, nas sombras, uma criança que ainda não se mexera, subitamente curvou-se para a frente e gritou até à morte, como um cão! (HUYSMANS, J.-K., 1895, p. 378-379)

Clóvis entende que a responsabilidade do que fosse dominado por uma multidão é menor do que a dos diretores de uma eventual ação criminosa que demandasse punição. Essa conclusão seria confirmada tanto pela ciência quando pelo bom senso popular. Tal responsabilidade, contudo, comportaria limites e gradações que poderiam ser encontrados mediante a aplicação da teoria da identidade e da finalidade. Importaria, pois, questionar se o indivíduo permaneceu o mesmo antes e depois do ato cometido, coordenado este com suas tendências. Sua responsabilidade então seria plena. Se, todavia, ele encontrasse na multidão apenas um estímulo, algo que agisse nele como, por exemplo, o álcool, ainda assim, ter-se-ia responsabilidade plena, embora não no mesmo grau da hipótese anterior. Já nos casos em que houvesse completa alucinação do agente, transformado pela ação violenta do meio circundante, a responsabilidade poderia ser inteiramente nula ou, conforme as circunstâncias, muito restrita. Mas, nos casos em que houvesse uma combinação de energias convergentes: de um lado, a sugestão de uma ação ilícita cinda do exterior; de outro, a consonância dessa finalidade ilícita com as tendências individuais, a responsabilidade do agente sofreria uma gradação, sendo “tanto maior quanto mais harmonica fôr essa consonancia, quanto mais conservar o homem a sua feição individual, a sua personalidade no torvelinho das paixões do grande numero” (id., ibid.).

Referências

Bevilacqua, C. (1896). Criminologia e Direito. Bahia: Livraria Magalhães.

Huysmans, J.-K. (1895). Là-bas. Paris: Tresse & Stock.

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Esta postagem é um recorte de pesquisa. Trata-se de saber como a chamada psicologia coletiva chegou no Brasil, quem se preocupou com ela, estudando seu funcionamento especialmente com relação aos crimes cometidos por multidões. Entender como se daria esse suposto "contágio", na ausência de vetores biológicos, físicos, concretos, que justificassem uma ação coletiva voltada para um fim ou objetivo específico. Enfim, perguntas sem resposta. O tema, contudo, é bem explorado por Clovis, especialmente porque se ocupa mais em saber quem seriam os suscetíveis, os mais sugestionáveis.