“Antigamente, a menos que se
tivesse previamente razões bem fortes para suspeitar de mentira suas
testemunhas ou seus narradores, todo fato afirmado era, em três quartos das
ocasiões, um fato aceito. Não estamos falando: isso aconteceu há muito tempo.
Lucien Febvre mostrou isso, excelentemente, para o Renascimento: não se
pensava, não se agia de maneira diferente em épocas bastante próximas [de nós]
para que suas obras-primas permanecessem para nós ainda um alimento vivo. Não
estamos falando: esta era naturalmente a atitude daquela multidão crédula da
qual, até os dias em que vivemos, a grande massa, infelizmente mesclada a mais
de um semierudito, ameaça constantemente arrastar nossas frágeis civilizações
rumo a terríveis abismos de ignorância ou de loucuras. As mais firmes
inteligências não escapavam então, não podiam escapar ao preconceito comum.
Contava-se que caíra uma chuva de sangue? Então é que havia chuvas de sangue.
Montaigne lia, em seus caros Antigos, esta ou aquela lorota sobre o país cujos
habitantes nascem sem cabeça ou sobre a força prodigiosa do peixe rêmora?. Ele
as inscrevia sem pestanejar entre os argumentos de sua dialética [: por mais
capaz que fosse de desmontar engenhosamente o mecanismo de um falso rumor, as
idéias feitas o deixavam bem mais desconfiado do que supostos fatos atestados].
Assim, reinava, segundo o mito rabelaisiano, o velho Ouvir-Dizer. No mundo
físico como no mundo dos homens. No mundo físico talvez mais ainda do que no
mundo dos homens. Pois, instruído por uma experiência mais direta, duvidava-se
mais de um acontecimento humano do que de um meteoro ou de um pretenso acidente
da vida orgânica. A filosofia de vocês repelia o milagre? Ou a religião de
vocês repelia os milagres das outras religiões? Seria preciso que se
esforçassem penosamente para descobrir para essas surpreendentes manifestações
causas supostamente inteligíveis que, na verdade ações demoníacas ou influxos
ocultos, continuavam a aderir a um sistema de ideias ou imagens completamente
estranho ao que chamaríamos hoje de pensamento científico. Negar a própria
manifestação, tal audácia não ocorria ao espírito. [Corifeu dessa escola
paduana tão estranha ao sobrenatural cristão,] Pomponazzi não acredita que
reis, mesmo ungidos pelo crisma da santa ampola, pudessem, porque eram reis,
curar doentes ao tocá-los. No entanto, não contestava absolutamente as curas. Admitia-as
a título de uma propriedade fisiológica por ele concebida como hereditária [O médico
real, supunha ele, molhando todas as vezes seu dedo antes de tocá-lo]: o
glorioso privilégio da função sagrada era associado às virtudes curativas de
uma saliva dinástica.”
BLOCH,
Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002, p. 123.
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