[67]"O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo.
Desde
sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu
objeto
não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com
razão, pois a perfeição e completude do sistema de
valores que
determina o cosmos épico cria um todo demasiado orgânico
para
que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si
mesma,
tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de
descobrir-se como
interioridade, a ponto de tornar-se individualidade. A
onipotência
da ética, que põe cada alma como única e incomparável,
permanece
alheia e afastada desse mundo. Quando a vida, como vida,
encontra em si um sentido imanente, as categorias da
organicidade
são as que tudo determinam: estrutura e fisionomia
individuais
nascem do equilíbrio no condicionamento recíproco entre
parte e todo, e não da reflexão polêmica, voltada sobre si própria,
da personalidade solitária e errante. Portanto, o significado
que um acontecimento pode assumir num mundo de tal completude
é sempre quantitativo: a
série de aventuras
na qual o
acontecimento é simbolizado adquire seu
peso pela importância
que possui para a fortuna de um grande complexo vital orgânico,
de um povo ou de uma estirpe. Que os heróis da epopeia,
portanto, tenham de ser reis tem causas diversas, embora igualmente
formais, da mesma exigência para a tragédia. Nesta, ela é
fruto apenas da necessidade de remover do caminho da
ontologia
do destino todas as causalidades mesquinhas da vida:
porque
[68] a figura social
culminante é a única cujos conflitos, preservando
a aparência sensível de uma existência simbólica,
resultam exclusivamente
do problema trágico; porque somente ela, já em sua
forma de manifestação externa, pode cercar-se da
atmosfera indispensável
à significação isolada. O que era símbolo na tragédia
torna-se realidade na epopeia: o peso da vinculação de um
destino com uma totalidade. O destino universal, que na
tragédia
não passava da sequência necessária de zeros
transformados
em milhão pelo acréscimo da unidade, é o que, na epopeia,
confere
conteúdo aos acontecimentos; e o fato de portar tal
destino
não cria isolamento algum à volta do herói épico; antes,
prendeu
com laços indissolúveis à comunidade cujo destino
cristaliza-se
em sua
vida."
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: editora 34, 2007, p. 67,68.
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