quinta-feira, 29 de março de 2018

O Corpo e o Espírito


"O Corpo e o Espírito não são duas naturezas distintas, mas uma só e mesma natureza considerada de dois pontos de vista diferentes; há, pois, entre a Fisiologia e a Filosofia do Espírito não uma diferença de objeto, mas uma diferença de método. Para o fisiologista, a inteligência não pode ser outra coisa senão que esta propriedade que possui todo corpo vivente de efetuar movimentos úteis à conservação da vida. Desse ponto de vista, a Memória é uma propriedade da célula vivente. O verdadeiro nome da Memória é adaptação. Para o filósofo, ao contrário, tudo o que existe é um modo de Pensamento. Ele não admite a Matéria mais do que o Fisiologista admite o espírito. O Psicólogo procura em vão estabelecer uma região intermediária para reunir fragmentos de ideais nos lobos cerebrais: não se pode falar duas linguagens simultaneamente, nem afirmar e negar ao mesmo tempo os mesmos princípios. Se a Psicologia quiser ser alguma coisa, que ela seja um capítulo da Fisiologia ou uma Filosofia do Espírito.
Também é preciso lembrar, nos estudos filosóficos, o grande número de espíritos bem dotados para a análise que se deixam inquietar pelo complexo aparelho dos laboratórios. Considerar o homem como uma máquina, a paixão como uma neurose e o crime como um reflexo nos conduz à indulgência para com os outros, o que é bom, mas nos leva também ao próprio abandono, o que é mau. Uma única ideia pode nos sustentar na luta contra nossos preconceitos, nossas paixões e nossos vícios: é a ideia de que o Espírito e a Natureza não se opõem; que o hábito pode combater o hábito; que o homem tem que lutar apenas contra seus erros passados, e que ele pode se transformar e se refazer a si mesmo além de todo limite por um esforço paciente e contínua vigilância sobre si mesmo. O corpo não é mais que uma muito antiga tradição, da qual o pensamento carrega o peso; é preciso compreender que não se trata de um peso morto, mas de um sistema vivo de ideias que todo novo pensamento e todo novo esforço modificam inteiramente. Certos disso, poderemos, ― enquanto outros procuram com ansiedade novos meios para satisfação de nossos desejos e a diminuição de nossos sofrimentos ―, nos esforçar para vencer uns e melhor suportar os outros."

ÉMILE CHARTIER (1899). “Sur la mémoire” in Revue de Métaphysique et de Morale, VIIe année, janvier 1899, pp. 26-38, mai 1899, pp. 302-324, septembre 1899, pp. 563-578. Tradução minha.


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