"O Corpo e o Espírito não
são duas naturezas distintas, mas uma só e mesma natureza considerada de dois
pontos de vista diferentes; há, pois, entre a Fisiologia e a Filosofia do
Espírito não uma diferença de objeto, mas uma diferença de método. Para o
fisiologista, a inteligência não pode ser outra coisa senão que esta
propriedade que possui todo corpo vivente de efetuar movimentos úteis à
conservação da vida. Desse ponto de vista, a Memória é uma propriedade da
célula vivente. O verdadeiro nome da Memória é adaptação. Para o filósofo, ao
contrário, tudo o que existe é um modo de Pensamento. Ele não admite a Matéria
mais do que o Fisiologista admite o espírito. O Psicólogo procura em vão estabelecer
uma região intermediária para reunir fragmentos de ideais nos lobos cerebrais: não
se pode falar duas linguagens simultaneamente, nem afirmar e negar ao mesmo
tempo os mesmos princípios. Se a Psicologia quiser ser alguma coisa, que ela
seja um capítulo da Fisiologia ou uma Filosofia do Espírito.
Também é preciso
lembrar, nos estudos filosóficos, o grande número de espíritos bem dotados para
a análise que se deixam inquietar pelo complexo aparelho dos laboratórios.
Considerar o homem como uma máquina, a paixão como uma neurose e o crime como
um reflexo nos conduz à indulgência para com os outros, o que é bom, mas nos leva
também ao próprio abandono, o que é mau. Uma única ideia pode nos sustentar na luta
contra nossos preconceitos, nossas paixões e nossos vícios: é a ideia de que o
Espírito e a Natureza não se opõem; que o hábito pode combater o hábito; que o
homem tem que lutar apenas contra seus erros passados, e que ele pode se
transformar e se refazer a si mesmo além de todo limite por um esforço paciente
e contínua vigilância sobre si mesmo. O corpo não é mais que uma muito antiga tradição,
da qual o pensamento carrega o peso; é preciso compreender que não se trata de
um peso morto, mas de um sistema vivo de ideias que todo novo pensamento e todo
novo esforço modificam inteiramente. Certos disso, poderemos, ― enquanto outros
procuram com ansiedade novos meios para satisfação de nossos desejos e a diminuição
de nossos sofrimentos ―, nos esforçar para vencer uns e melhor suportar os
outros."
ÉMILE CHARTIER (1899).
“Sur la mémoire” in Revue de
Métaphysique et de Morale, VIIe année, janvier 1899, pp. 26-38, mai 1899,
pp. 302-324, septembre 1899, pp. 563-578. Tradução minha.
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