domingo, 25 de março de 2018

Janet e o sentimento de vazio


Capítulo I – Os sentimentos fundamentais 
I. O sentimento de vazio

Esse curso é a aplicação de nossos estudos sobre os sentimentos a um caso particular: os sentimentos afetivos.
Estudamos até aqui os sentimentos de uma maneira abstrata e geral. Analisamos notadamente o esforço, a fadiga, a alegria, a tristeza, o sucesso, o fracasso, etc. Mas essas noções abstratas sobre os sentimentos só são boas nos livros: elas não podem existir no mundo real sem se relacionar a tal ou qual fenômeno em particular. Por exemplo, o sentimento do esforço se relacionará sempre a algum trabalho especial, ele será associado a tal conduta ou a tal ação, locomoção, porte de um fardo, redação de um livro, etc. Uma multiplicidade de problemas interessantes seriam assim colocados pela aplicação dos sentimentos fundamentais às diferentes condutas psicológicas.
Um estudo capital a realizar seria aquele das relações entre os objetos e os sentimentos. Por exemplo, ver-se-ia que a alegria e a tristeza são os sentimentos que se unem o mais frequentemente à propriedade. O estudo dos objetos deveria, pois, reunir-se àquele dos sentimentos.
Os sentimentos deveriam ser também examinados em suas relações com a personalidade. A personalidade se desenvolve, com efeito, em grande parte pelos sentimentos, notadamente pela afeição, ou a admiração que se tem por si próprio, o que nada tem de excepcional[1].
Este ano, vamos nos deter na combinação dos sentimentos com a personalidade dos outros, ou seja, a combinação dos sentimentos com as condutas sociais, pois estas se compõem de relações entre nossas próprias condutas e a personalidade dos outros.
Iremos, pois, estudar duas partes essenciais: primeiro, o estudo dos sentimentos elementares eles mesmos e aquele das condutas sociais à quais eles podem se relacionar; em segundo lugar, o estudo dos sentimentos afetivos propriamente ditos, que resultam das relações entre os sentimentos elementares e as condutas sociais.
Os sentimentos se relacionam a quatro grupos fundamentais:
1º O esforço.
2º A fadiga.
3º O fracasso, ou tristeza, ou ainda angústia.
4º O sucesso, ou alegria, ou ainda triunfo.
As condutas sociais que examinaremos a seguir se relacionam a três grupos principais:
1º As condutas sociais elementares, reações simples correspondendo ao nível dos animais.
2º As condutas sociais médias, reações correspondendo ao nível médio dos homens.
3º As condutas sociais superiores, morais, artísticas, abstratas, etc. Nessas últimas, o papel dos sentimentos é menos importante que no grupo precedente.
 Antes de abordar o estudo dos quatro grupos elementares de sentimentos, gostaria de resumir aquilo que já disse no último ano a propósito do que chamei do sentimento de vazio, que corresponde precisamente à ausência quase completa de todo sentimento.
É um sentimento surpreendente, frequente entre os esgotados e os neurastênicos. Poder-se-ia defini-lo como o sentimento da perda de sentimentos, o sentimento de quem não tem sentimento. Os neurastênicos que sofrem desta perturbação se queixam primeiro de que sua cabeça é vazia. Trata-se de uma metáfora, porque não se pode ter o sentimento de cheio na cabeça. Trata-se de um vazio moral. Uma nuvem separa os objetos exteriores do doente. Ele nada mais ama e nada mais detesta. Existe um véu entre ele e as coisas. Talvez exista aí, de qualquer modo, um sentimento, um sentimento de evasão. Em todo caso, o doente perdeu os sentimentos que todos nós temos relativamente aos objetos: sentimento de satisfação, sentimento de propriedade, sentimento de sofrimento.
A propósito desse último sentimento, é preciso ter muito cuidado em distinguir a dor e o sofrimento. A dor é uma reação física, um ato de distanciamento, um gesto de retirada, que pode mesmo resultar em coma, sem intervenção da consciência. O doente que tem o sentimento de vazio conserva o ato físico da dor, as reações à dor; mas o sofrimento é exclusivamente um sentimento, e o vazio o suprime. Retenha-se, pois, que o vazio suprime o sentimento de sofrimento, mas conserva o ato da dor.
O sentimento de vazio é frequentemente acompanhado do sentimento da perda de interesse, que normalmente preenche toda nossa vida, que é a causa de todas as nossas percepções. Algumas vezes existe apenas a diminuição do interesse sem sua desaparição total. O objeto parece então distante, pequeno, estranho. Por que estranho? É que o objeto não está mais acompanhado dos sentimentos que nós acrescentamos sempre aos objetos e que a eles são estreitamente associados. E em último estágio, o objeto se torna irreal.
A afeição pelo eu, o interesse que se tem por si mesmo, desaparece com a aparição do sentimento do vazio. De onde o suicídio frequente entre esses doentes: o medo da morte, quer dizer, o amor de si, ou o gosto pelas coisas desaparecem todos. Em uma das minhas observações, um doente estava acometido de um delírio no qual ele se acreditava morto, ainda que estivesse perfeitamente vivo: é que ele perdera o amor, o ódio, o interesse, e isso de uma maneira total, absoluta. Outro doente tornou-se invisível: o que queria dizer por aí e por que se queixava? Eis a explicação: os deprimidos querem que nos ocupemos deles, desinteressam de interessar os outros; se eles não se sentem interessantes, importantes, eles consideram que deixaram de existir, de serem visíveis. E aquilo que eles pensam deles eles transformam imediatamente em realidade: são invisíveis.
Os fenômenos de transposição da pessoa, de sua exteriorização, aproximam-se dos precedentes: o doente se acredita fora de seu corpo, ele contempla seu próprio corpo, ele se assiste viver. Como e por que ele tem essa conduta? O sentimento de vazio, que dá uma percepção dos atos sem os sentimentos que os acompanham, explica-o muito bem: o homem que se encontra preso a esse sentimento, e que se observa, todavia, como todos os homens, só pode contemplar-se do exterior: existe aí a exteriorização.
A lembrança desprovida de sentimento, a lembrança que parece muito antiga, sem data precisa, é também muito frequente.
Passamos rapidamente em revista as principais manifestações do sentimento de vazio. Como explicar esse fenômeno da ausência de sentimento?
Pode-se explicá-lo, como já se tentou, pela desaparição das sensações? Não: todas as sensações elementares subsistem perfeitamente.
Pode-se explicá-lo pela perda dos sentimentos relativos ao próprio corpo? Não: o doente conserva o sentido muscular e o sentido do movimento.
Pode-se explicá-lo pela existência de perturbações viscerais, problemas da respiração, da circulação, da digestão? Não, o doente tem suas sensações viscerais normais: ele sente que ele respira, que seu coração bate, que ele é constrangido por uma necessidade natural.
O que pode então faltar no sentimento de vazio? O que falta é a ação: o doente é inativo, não tem vontade de fazer nada. Desapareceram nele certas operações psicológicas que não mais podem se realizar.
Toda conduta psicológica se compõe de duas categorias de fenômenos: de uma parte, os atos primários determinados pelo mundo exterior (como o ato de retirar a mão sob a sensação de uma queimadura); de outra parte, numerosos fenômenos secundários, aqueles que Sherrington chamou reflexos proprioceptivos, em oposição aos reflexos exteroceptivos. São fenômenos determinados no próprio sujeito. Todos os sentimentos são assim reflexos proprioceptivos que se acrescentam à ação primária, elementar, para modificar, ativá-la, atrasá-la, detê-la momentânea ou definitivamente. O que falta no sentimento de vazio são justamente esses fenômenos secundários.
O exame dos doentes afetados pelo sentimento de vazio coloca, pois, em relevo, a existência de fenômenos secundários nos homens normais e nos introduz naturalmente no estudo dos sentimentos. Na próxima lição, veremos os sentimentos que se relacionam ao primeiro grupo: aquele do esforço.

Tradução minha do capítulo I, parte I.
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.


[1]    Cf. notre Cours sur L’évolution psychologique de la personnalité, 1929.

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