Capítulo I – Os sentimentos fundamentais
I. O sentimento
de vazio
Esse curso é
a aplicação de nossos estudos sobre os sentimentos a um caso particular: os
sentimentos afetivos.
Estudamos até
aqui os sentimentos de uma maneira abstrata e geral. Analisamos notadamente o
esforço, a fadiga, a alegria, a tristeza, o sucesso, o fracasso, etc. Mas essas
noções abstratas sobre os sentimentos só são boas nos livros: elas não podem
existir no mundo real sem se relacionar a tal ou qual fenômeno em particular.
Por exemplo, o sentimento do esforço se relacionará sempre a algum trabalho
especial, ele será associado a tal conduta ou a tal ação, locomoção, porte de
um fardo, redação de um livro, etc. Uma multiplicidade de problemas
interessantes seriam assim colocados pela aplicação dos sentimentos fundamentais
às diferentes condutas psicológicas.
Um estudo
capital a realizar seria aquele das relações entre os objetos e os sentimentos.
Por exemplo, ver-se-ia que a alegria e a tristeza são os sentimentos que se
unem o mais frequentemente à propriedade. O estudo dos objetos deveria, pois,
reunir-se àquele dos sentimentos.
Os sentimentos
deveriam ser também examinados em suas relações com a personalidade. A
personalidade se desenvolve, com efeito, em grande parte pelos sentimentos,
notadamente pela afeição, ou a admiração que se tem por si próprio, o que nada
tem de excepcional[1].
Este ano,
vamos nos deter na combinação dos sentimentos com a personalidade dos outros,
ou seja, a combinação dos sentimentos com as condutas sociais, pois estas se compõem
de relações entre nossas próprias condutas e a personalidade dos outros.
Iremos, pois,
estudar duas partes essenciais: primeiro, o estudo dos sentimentos elementares
eles mesmos e aquele das condutas sociais à quais eles podem se relacionar; em segundo
lugar, o estudo dos sentimentos afetivos propriamente ditos, que resultam das
relações entre os sentimentos elementares e as condutas sociais.
Os
sentimentos se relacionam a quatro grupos fundamentais:
1º O esforço.
2º A fadiga.
3º O
fracasso, ou tristeza, ou ainda angústia.
4º O sucesso,
ou alegria, ou ainda triunfo.
As condutas
sociais que examinaremos a seguir se relacionam a três grupos principais:
1º As condutas
sociais elementares, reações simples correspondendo ao nível dos animais.
2º As
condutas sociais médias, reações correspondendo ao nível médio dos homens.
3º As
condutas sociais superiores, morais, artísticas, abstratas, etc. Nessas
últimas, o papel dos sentimentos é menos importante que no grupo precedente.
Antes de abordar o estudo dos quatro grupos
elementares de sentimentos, gostaria de resumir aquilo que já disse no último
ano a propósito do que chamei do sentimento de vazio, que corresponde
precisamente à ausência quase completa de todo sentimento.
É um
sentimento surpreendente, frequente entre os esgotados e os neurastênicos.
Poder-se-ia defini-lo como o sentimento da perda de sentimentos, o sentimento
de quem não tem sentimento. Os neurastênicos que sofrem desta perturbação se queixam
primeiro de que sua cabeça é vazia. Trata-se de uma metáfora, porque não se
pode ter o sentimento de cheio na cabeça. Trata-se de um vazio moral. Uma nuvem
separa os objetos exteriores do doente. Ele nada mais ama e nada mais detesta.
Existe um véu entre ele e as coisas. Talvez exista aí, de qualquer modo, um
sentimento, um sentimento de evasão. Em todo caso, o doente perdeu os
sentimentos que todos nós temos relativamente aos objetos: sentimento de
satisfação, sentimento de propriedade, sentimento de sofrimento.
A propósito
desse último sentimento, é preciso ter muito cuidado em distinguir a dor e o
sofrimento. A dor é uma reação física, um ato de distanciamento, um gesto de
retirada, que pode mesmo resultar em coma, sem intervenção da consciência. O
doente que tem o sentimento de vazio conserva o ato físico da dor, as reações à
dor; mas o sofrimento é exclusivamente um sentimento, e o vazio o suprime.
Retenha-se, pois, que o vazio suprime o sentimento de sofrimento, mas conserva
o ato da dor.
O sentimento
de vazio é frequentemente acompanhado do sentimento da perda de interesse, que
normalmente preenche toda nossa vida, que é a causa de todas as nossas
percepções. Algumas vezes existe apenas a diminuição do interesse sem sua desaparição
total. O objeto parece então distante, pequeno, estranho. Por que estranho? É
que o objeto não está mais acompanhado dos sentimentos que nós acrescentamos
sempre aos objetos e que a eles são estreitamente associados. E em último
estágio, o objeto se torna irreal.
A afeição
pelo eu, o interesse que se tem por si mesmo, desaparece com a aparição do
sentimento do vazio. De onde o suicídio frequente entre esses doentes: o medo
da morte, quer dizer, o amor de si, ou o gosto pelas coisas desaparecem todos.
Em uma das minhas observações, um doente estava acometido de um delírio no qual
ele se acreditava morto, ainda que estivesse perfeitamente vivo: é que ele
perdera o amor, o ódio, o interesse, e isso de uma maneira total, absoluta.
Outro doente tornou-se invisível: o que queria dizer por aí e por que se
queixava? Eis a explicação: os deprimidos querem que nos ocupemos deles,
desinteressam de interessar os outros; se eles não se sentem interessantes,
importantes, eles consideram que deixaram de existir, de serem visíveis. E
aquilo que eles pensam deles eles transformam imediatamente em realidade: são
invisíveis.
Os fenômenos
de transposição da pessoa, de sua exteriorização, aproximam-se dos precedentes:
o doente se acredita fora de seu corpo, ele contempla seu próprio corpo, ele se
assiste viver. Como e por que ele tem essa conduta? O sentimento de vazio, que
dá uma percepção dos atos sem os sentimentos que os acompanham, explica-o muito
bem: o homem que se encontra preso a esse sentimento, e que se observa,
todavia, como todos os homens, só pode contemplar-se do exterior: existe aí a
exteriorização.
A lembrança
desprovida de sentimento, a lembrança que parece muito antiga, sem data
precisa, é também muito frequente.
Passamos
rapidamente em revista as principais manifestações do sentimento de vazio. Como
explicar esse fenômeno da ausência de sentimento?
Pode-se
explicá-lo, como já se tentou, pela desaparição das sensações? Não: todas as sensações
elementares subsistem perfeitamente.
Pode-se
explicá-lo pela perda dos sentimentos relativos ao próprio corpo? Não: o doente
conserva o sentido muscular e o sentido do movimento.
Pode-se
explicá-lo pela existência de perturbações viscerais, problemas da respiração,
da circulação, da digestão? Não, o doente tem suas sensações viscerais normais:
ele sente que ele respira, que seu coração bate, que ele é constrangido por uma
necessidade natural.
O que pode então
faltar no sentimento de vazio? O que falta é a ação: o doente é inativo, não
tem vontade de fazer nada. Desapareceram nele certas operações psicológicas que
não mais podem se realizar.
Toda conduta
psicológica se compõe de duas categorias de fenômenos: de uma parte, os atos
primários determinados pelo mundo exterior (como o ato de retirar a mão sob a
sensação de uma queimadura); de outra parte, numerosos fenômenos secundários,
aqueles que Sherrington chamou reflexos proprioceptivos, em oposição aos
reflexos exteroceptivos. São fenômenos determinados no próprio sujeito. Todos
os sentimentos são assim reflexos proprioceptivos que se acrescentam à ação primária,
elementar, para modificar, ativá-la, atrasá-la, detê-la momentânea ou
definitivamente. O que falta no sentimento de vazio são justamente esses
fenômenos secundários.
O exame dos
doentes afetados pelo sentimento de vazio coloca, pois, em relevo, a existência
de fenômenos secundários nos homens normais e nos introduz naturalmente no
estudo dos sentimentos. Na próxima lição, veremos os sentimentos que se relacionam
ao primeiro grupo: aquele do esforço.
Tradução minha do capítulo I, parte I.
JANET,
Pierre. L’amour et la haine. Notes
de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.
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