sábado, 31 de março de 2018

Janet e o sentimento do esforço



Capítulo I – Os sentimentos fundamentais 
II. O sentimento do esforço
Permitam-me relembrar uma comparação que fazemos frequentemente, entre um ser vivente e um automóvel. O automóvel compõe-se de dois mecanismos:
1º Um mecanismo motor, necessário, fundamental; mas que, sozinho, é inutilizável.
2º Um mecanismo acessório relacionado a quatro funções principais: aceleração, freio, ré, parada. Tais são os aparelhos que permitem usar utilmente e praticamente o automóvel. Se a parada for definitiva, ela é acompanhada da descarga do mecanismo.
No ser vivo, existem quatro regulagens principais: o sentimento do esforço, correspondendo à aceleração, o sentimento da fadiga correspondendo à frenagem, o sentimento de sofrimento ou de angustia correspondendo à ré, enfim, o sentimento do gozo que corresponde à parada com descarga. Esses sentimentos desempenham um grande papel na vida social e, por conseguinte, nas condutas sociais daí resultantes.
O esforço é um sentimento que muito tem preocupado os psicólogos a partir do século VXIII, notadamente Régis, Cabanis e, sobretudo, Maine de Biran, o filósofo do esforço. Maine de Biran apresenta o esforço de um ponto de vista metafísico que se explica mal porque, em realidade, o esforço é uma ação como as outras, tão misteriosa quanto as outras, mas não mais.
Confunde-se frequentemente o esforço com a reação elementar do sentido muscular ou cinestésico. Mas o esforço é mais do que esta reação: o sentido cinestésico é uma regulação de atitudes parciais, enquanto o esforço é uma aceleração que diz respeito a todas as ações, uma regulação de conjunto.
O esforço propriamente dito se relaciona a uma multiplicidade de questões. O sentimento do interesse, primeiramente, interesse por coisas numerosas ou coisas isoladas. Depois a atenção, interesse particular que detém a ação mais do que a ativa. Depois o desejo, fenômeno muito mal explicado, onde há uma parte de esforço, de trabalho para obter alguma coisa e que pode chegar até a paixão, esforço violento na direção de algo que se opõe à inércia e à melancolia. Enfim, o fenômeno do trabalho, que cria diferenças consideráveis entre os homens, é uma forma de esforço, um interesse que criamos por objetos que não se têm. Em uma palavra, o esforço relacionando-se a todas as condutas de aceleração.
Que é, pois, esse sentimento do esforço? Um sentimento se define dificilmente, sobretudo quando tomado isoladamente. Nós podemos opor o esforço ao sentimento de vazio: o sentimento de vazio exclui o interesse, leva à indiferença; o esforço seria, de preferência, o sentimento de plenitude. Os caracteres do esforço, com efeito, são exatamente os opostos aos caracteres do vazio. O esforço cria o sentimento da realidade, da vida, do acontecer que é dele o objetivo. O esforço cria o presente e dá ao passado um caráter particular: as lembranças tornando-se reais, às vezes mesmo muito reais, sob a influência do esforço. Elas podem se transformar, por exemplo, em alucinações. O esforço se opõe, pois, ao sentimento de vazio. Por que se pode defini-lo?
Bain quis caracterizar o esforço pelo sofrimento, pelo caráter penoso que ele confere à ação. Isso não é exato: o esforço e o sofrimento podem se combinar; mas há esforços sem sofrimento, e o sofrimento pode não estar acompanhado de esforços. Da mesma forma, o esforço não é o gozo: ele caminha na direção do gozo, mas com este não se confunde.
Não encontramos, até aqui, para caracterizar o esforço, senão caracteres negativos. Tratemos, pois, de definir a ação correspondente ao esforço, aquilo que se pode chamar de a conduta do esforço, e veremos aquilo que podemos concluir a respeito desse sentimento. Evitaremos assim a falta na qual cai a maioria dos filósofos que, a pretexto de que o esforço é um sentimento, não se ocupam das ações que o acompanham.
Há, com efeito, uma conduta do esforço, e o esforço enquanto sentimento não é senão que a consciência desta conduta.
De modo geral, uma conduta é um conjunto de ações. O que é então uma ação? Uma ação é um conjunto de movimentos que modificam alguma coisa no mundo exterior. Por exemplo, eu pratico a ação de comer uma maçã: modifiquei o mundo exterior, suprimi a maçã, comendo-a. Todas as nossas ações modificam, a cada instante, o mundo que nos cerca de modo imperceptível. Mas o esforço, o que ele modifica? Ele não modifica necessariamente o mundo exterior. Ele não é, pois, uma ação precisa, uma ação primária. E, todavia, não se faz um esforço por nada, sem objetivo e sem objeto. O esforço é uma ação secundária, sobrepondo-se à ação principal, do mesmo modo que a aceleração se superpõe à ação do motor. Uma ação poderosa pode, pois, se fazer sem esforço, enquanto um pequeno cão faz um esforço quando salta na direção de uma porção de açúcar que se lhe oferece. O esforço aumenta a ação. Ele não constitui por si mesmo uma ação especial. A ação alcança consequências conhecidas, determinadas: quando, por exemplo, corta-se uma maça em duas partes, sabe-se precisamente o que vai acontecer. Ao contrário, com o esforço, há uma parte de aleatório, de desconhecido, de dúvida quanto ao resultado que se vai obter. O esforço pode aperfeiçoar nossas ações. Ele é feito por nós: ele tem sua origem em nós, e sentimos que ele vem de nós. No esforço, poderemos, pois, agir para nos superarmos, para ampliar nossas ações primárias.
Eis naquilo que concerne aos caracteres exteriores do esforço. Agora é preciso indagar quanto ao que se passa em nós quando acrescentamos esforço a uma ação primária qualquer.
Uma primeira tese, dada por Maine de Biran, foi admitida sem objeções até 1850 aproximadamente. É uma tese, sobretudo, metafísica. Produz-se, de acordo com Maine de Biran, uma emissão de força nervosa que parte do cérebro para se deslocar até os músculos. O sentimento de energia despendida, o sentimento do escoamento da força, constituiria o esforço. Eis a tese que foi igualmente sustentada por Bain, Wundt e Charcot.
William James combate esta tese em 1880 e zomba polidamente dela. Que sentimento estranho e novo, diz ele, aquele do escoamento da força! Que sabemos nós sobre o que se passa em nossos nervos? E James discute de maneira interessante a observação anteriormente sinalada por Wundt. Diz-se a um hemiplégico que mova seu braço. Ele faz um esforço. Seu braço não se move minimamente e, todavia, diz-se, o hemiplégico sentiria seu braço mover-se? Não, responde James. O que o hemiplégico sente são as contrações musculares na parte não paralisada. Porque, ainda que incapaz de mover o braço hemiplégico, ele permanece capaz de uma quantidade de outros movimentos. James conclui que a consideração do esforço como um sentimento de origem central é uma complicação inútil.
Trabalhou-se intensamente então para estudar os movimentos periféricos no esforço: modificações na respiração (aspira-se fortemente sem expirar, para que o braço possa apoiar-se sobre a região torácica para agir vigorosamente), modificação cardíaca, etc. Todos esses estudos estão completamente fora de questão: as modificações viscerais se constatam em tudo, na alegria, na emoção, no medo, em todos os sentimentos, e elas são sempre muito próximas, mesmo nos sentimentos mais opostos, como nos mostram os trabalhos de Montanelli.
Tratemos, pois, de considerar a própria conduta do esforço, da aceleração, se preferirdes, e o mais claramente possível. Somos quase inevitavelmente levados, para defini-lo, a nos servirmos da expressão: aumento de forças psicológicas. Tem-se normalmente receio de empregar a palavra “forças”, porque ela lembra as antigas “faculdades” que saíram de moda. E depois, diz-se, essas forças psicológicas, não se sabe exatamente aquilo que elas são, não mais do que sabe o que é a eletricidade. Seja, mas fala-se bem sobre esta última sem saber exatamente o que ela é. Definamos, pois, a força psicológica, mas com prudência, ou seja, unicamente por seus efeitos[1].
Uma força é aquilo que é propenso a executar certo trabalho. Por exemplo, pode-se erguer um pequeno peso e pode-se erguer um grande peso; pode-se caminhar dez minutos, pode-se caminhar duas horas. Essas variações nos efeitos permitem determinar as quantidades de forças. Tal é a definição física. Diremos, do mesmo modo, que a força psicológica é aquilo que permite ao indivíduo executar uma ação com mais ou menos duração, mais ou menos repetições, mais ou menos potencia.
Conciliemos esta noção, aquela de carga de uma tendência. A carga de uma tendência é precisamente a força que pode dar às ações que ela tende a executar. Esta carga varia segundo as tendências. As tendências alimentares e sexuais são muito carregadas. O homem acometido de fome tudo faz para nutrir-se. As tendências sexuais são às vezes igualmente carregadas. Ao contrário, certas tendências, como, por exemplo, a tendência à leitura, são muito pouco desenvolvidas entre muitos indivíduos.
O esforço é um sentimento que se acrescenta, sobretudo, às tendências pouco carregadas: ele as estimula despertando outra tendência mais carregada. Lembrem-se do que vos disse ano passado sobre a drenagem das tendências: as tendências deixam-se drenar facilmente, de sorte que uma tendência pode drenar forças de outras tendências às vezes muito mais carregadas. Por exemplo, a personalidade é uma tendência vaga, mas carregada. É à personalidade que se relacionam as tendências à propriedade, à vaidade, ao respeito pelo homem. Essa tendência da personalidade se une, muitas vezes, às outras tendências: uma se observa incessantemente no esforço. Este é um dos caracteres importantes do fenômeno da aceleração.
Em suma, o esforço é uma regulação da ação primária pela adição de forças psicológicas. Esta adição se faz muito frequentemente ao despertar, para sustentar uma tendência fraca de uma tendência fortemente carregada e, notadamente, desta tendência geral que se resume na noção de personalidade.

Tradução da parte II do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.



[1]    Cf. nosso curso sobre La force et la faiblesse psychologiques, 1930.

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