Capítulo I – Os sentimentos
fundamentais
II. O sentimento do esforço
Permitam-me relembrar uma comparação que fazemos frequentemente, entre
um ser vivente e um automóvel. O automóvel compõe-se de dois mecanismos:
1º Um mecanismo motor, necessário, fundamental; mas que, sozinho, é
inutilizável.
2º Um mecanismo acessório relacionado a quatro funções principais:
aceleração, freio, ré, parada. Tais são os aparelhos que permitem usar
utilmente e praticamente o automóvel. Se a parada for definitiva, ela é
acompanhada da descarga do mecanismo.
No ser vivo, existem quatro regulagens principais: o sentimento do
esforço, correspondendo à aceleração, o sentimento da fadiga correspondendo à
frenagem, o sentimento de sofrimento ou de angustia correspondendo à ré, enfim,
o sentimento do gozo que corresponde à parada com descarga. Esses sentimentos
desempenham um grande papel na vida social e, por conseguinte, nas condutas
sociais daí resultantes.
O esforço é um sentimento que muito tem preocupado os psicólogos a partir
do século VXIII, notadamente Régis, Cabanis e, sobretudo, Maine de Biran, o
filósofo do esforço. Maine de Biran apresenta o esforço de um ponto de vista
metafísico que se explica mal porque, em realidade, o esforço é uma ação como
as outras, tão misteriosa quanto as outras, mas não mais.
Confunde-se frequentemente o esforço com a reação elementar do sentido
muscular ou cinestésico. Mas o esforço é mais do que esta reação: o sentido cinestésico
é uma regulação de atitudes parciais, enquanto o esforço é uma aceleração que diz
respeito a todas as ações, uma regulação de conjunto.
O esforço propriamente dito se relaciona a uma multiplicidade de
questões. O sentimento do interesse, primeiramente, interesse por coisas
numerosas ou coisas isoladas. Depois a atenção, interesse particular que detém
a ação mais do que a ativa. Depois o desejo, fenômeno muito mal explicado, onde
há uma parte de esforço, de trabalho para obter alguma coisa e que pode chegar
até a paixão, esforço violento na direção de algo que se opõe à inércia e à
melancolia. Enfim, o fenômeno do trabalho, que cria diferenças consideráveis
entre os homens, é uma forma de esforço, um interesse que criamos por objetos
que não se têm. Em uma palavra, o esforço relacionando-se a todas as condutas
de aceleração.
Que é, pois, esse sentimento do esforço? Um sentimento se define
dificilmente, sobretudo quando tomado isoladamente. Nós podemos opor o esforço
ao sentimento de vazio: o sentimento de vazio exclui o interesse, leva à
indiferença; o esforço seria, de preferência, o sentimento de plenitude. Os
caracteres do esforço, com efeito, são exatamente os opostos aos caracteres do
vazio. O esforço cria o sentimento da realidade, da vida, do acontecer que é
dele o objetivo. O esforço cria o presente e dá ao passado um caráter
particular: as lembranças tornando-se reais, às vezes mesmo muito reais, sob a
influência do esforço. Elas podem se transformar, por exemplo, em alucinações.
O esforço se opõe, pois, ao sentimento de vazio. Por que se pode defini-lo?
Bain quis caracterizar o esforço pelo sofrimento, pelo caráter penoso
que ele confere à ação. Isso não é exato: o esforço e o sofrimento podem se
combinar; mas há esforços sem sofrimento, e o sofrimento pode não estar
acompanhado de esforços. Da mesma forma, o esforço não é o gozo: ele caminha na
direção do gozo, mas com este não se confunde.
Não encontramos, até aqui, para caracterizar o esforço, senão caracteres
negativos. Tratemos, pois, de definir a ação correspondente ao esforço, aquilo
que se pode chamar de a conduta do esforço, e veremos aquilo que podemos
concluir a respeito desse sentimento. Evitaremos assim a falta na qual cai a
maioria dos filósofos que, a pretexto de que o esforço é um sentimento, não se
ocupam das ações que o acompanham.
Há, com efeito, uma conduta do esforço, e o esforço enquanto sentimento
não é senão que a consciência desta conduta.
De modo geral, uma conduta é um conjunto de ações. O que é então uma
ação? Uma ação é um conjunto de movimentos que modificam alguma coisa no mundo
exterior. Por exemplo, eu pratico a ação de comer uma maçã: modifiquei o mundo
exterior, suprimi a maçã, comendo-a. Todas as nossas ações modificam, a cada
instante, o mundo que nos cerca de modo imperceptível. Mas o esforço, o que ele
modifica? Ele não modifica necessariamente o mundo exterior. Ele não é, pois,
uma ação precisa, uma ação primária. E, todavia, não se faz um esforço por
nada, sem objetivo e sem objeto. O esforço é uma ação secundária, sobrepondo-se
à ação principal, do mesmo modo que a aceleração se superpõe à ação do motor.
Uma ação poderosa pode, pois, se fazer sem esforço, enquanto um pequeno cão faz
um esforço quando salta na direção de uma porção de açúcar que se lhe oferece.
O esforço aumenta a ação. Ele não constitui por si mesmo uma ação especial. A
ação alcança consequências conhecidas, determinadas: quando, por exemplo,
corta-se uma maça em duas partes, sabe-se precisamente o que vai acontecer. Ao
contrário, com o esforço, há uma parte de aleatório, de desconhecido, de dúvida
quanto ao resultado que se vai obter. O esforço pode aperfeiçoar nossas ações.
Ele é feito por nós: ele tem sua origem em nós, e sentimos que ele vem de nós.
No esforço, poderemos, pois, agir para nos superarmos, para ampliar nossas
ações primárias.
Eis naquilo que concerne aos caracteres exteriores do esforço. Agora é
preciso indagar quanto ao que se passa em nós quando acrescentamos esforço a
uma ação primária qualquer.
Uma primeira tese, dada por Maine de Biran, foi admitida sem objeções
até 1850 aproximadamente. É uma tese, sobretudo, metafísica. Produz-se, de
acordo com Maine de Biran, uma emissão de força nervosa que parte do cérebro
para se deslocar até os músculos. O sentimento de energia despendida, o
sentimento do escoamento da força, constituiria o esforço. Eis a tese que foi
igualmente sustentada por Bain, Wundt e Charcot.
William James combate esta tese em 1880 e zomba polidamente dela. Que
sentimento estranho e novo, diz ele, aquele do escoamento da força! Que sabemos
nós sobre o que se passa em nossos nervos? E James discute de maneira
interessante a observação anteriormente sinalada por Wundt. Diz-se a um
hemiplégico que mova seu braço. Ele faz um esforço. Seu braço não se move
minimamente e, todavia, diz-se, o hemiplégico sentiria seu braço mover-se? Não,
responde James. O que o hemiplégico sente são as contrações musculares na parte
não paralisada. Porque, ainda que incapaz de mover o braço hemiplégico, ele
permanece capaz de uma quantidade de outros movimentos. James conclui que a
consideração do esforço como um sentimento de origem central é uma complicação
inútil.
Trabalhou-se intensamente então para estudar os movimentos periféricos
no esforço: modificações na respiração (aspira-se fortemente sem expirar, para
que o braço possa apoiar-se sobre a região torácica para agir vigorosamente),
modificação cardíaca, etc. Todos esses estudos estão completamente fora de
questão: as modificações viscerais se constatam em tudo, na alegria, na emoção,
no medo, em todos os sentimentos, e elas são sempre muito próximas, mesmo nos
sentimentos mais opostos, como nos mostram os trabalhos de Montanelli.
Tratemos, pois, de considerar a própria conduta do esforço, da
aceleração, se preferirdes, e o mais claramente possível. Somos quase
inevitavelmente levados, para defini-lo, a nos servirmos da expressão: aumento
de forças psicológicas. Tem-se normalmente receio de empregar a palavra
“forças”, porque ela lembra as antigas “faculdades” que saíram de moda. E
depois, diz-se, essas forças psicológicas, não se sabe exatamente aquilo que
elas são, não mais do que sabe o que é a eletricidade. Seja, mas fala-se bem
sobre esta última sem saber exatamente o que ela é. Definamos, pois, a força
psicológica, mas com prudência, ou seja, unicamente por seus efeitos[1].
Uma força é aquilo que é propenso a executar certo trabalho. Por
exemplo, pode-se erguer um pequeno peso e pode-se erguer um grande peso;
pode-se caminhar dez minutos, pode-se caminhar duas horas. Essas variações nos
efeitos permitem determinar as quantidades de forças. Tal é a definição física.
Diremos, do mesmo modo, que a força psicológica é aquilo que permite ao indivíduo
executar uma ação com mais ou menos duração, mais ou menos repetições, mais ou
menos potencia.
Conciliemos esta noção, aquela de carga de uma tendência. A carga de uma
tendência é precisamente a força que pode dar às ações que ela tende a executar.
Esta carga varia segundo as tendências. As tendências alimentares e sexuais são
muito carregadas. O homem acometido de fome tudo faz para nutrir-se. As
tendências sexuais são às vezes igualmente carregadas. Ao contrário, certas
tendências, como, por exemplo, a tendência à leitura, são muito pouco
desenvolvidas entre muitos indivíduos.
O esforço é um sentimento que se acrescenta, sobretudo, às tendências
pouco carregadas: ele as estimula despertando outra tendência mais carregada.
Lembrem-se do que vos disse ano passado sobre a drenagem das tendências: as
tendências deixam-se drenar facilmente, de sorte que uma tendência pode drenar
forças de outras tendências às vezes muito mais carregadas. Por exemplo, a
personalidade é uma tendência vaga, mas carregada. É à personalidade que se
relacionam as tendências à propriedade, à vaidade, ao respeito pelo homem. Essa
tendência da personalidade se une, muitas vezes, às outras tendências: uma se
observa incessantemente no esforço. Este é um dos caracteres importantes do
fenômeno da aceleração.
Em suma, o esforço é uma regulação da ação primária pela adição de
forças psicológicas. Esta adição se faz muito frequentemente ao despertar, para
sustentar uma tendência fraca de uma tendência fortemente carregada e, notadamente,
desta tendência geral que se resume na noção de personalidade.
Tradução
da parte II do capítulo I : Os sentimentos fundamentais
JANET,
Pierre. L’amour et la haine. Notes
de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.
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