"Tenho ido
ao Pão dos Pobres, aos domingos e lá deixado o meu obulo, em teu nome. Me
habituei com estas visitas dominicaes; de manhã saio, cheio de pensamentos
evangelicos, olhando com ternura mystica pros homens e pras cousas, tomo o
bonde como qualquer pacato, desço perto da ponte da Azenha. E vou andando, olho
com enternecimento fransciscano para ervinhas que crescem entre as pedras da
rua e para a agua do riacho. Vou rezando a minha oração lyrica. A poesia toma
uma forma infinita, sem “formas”, dispersa em todo o universo, vou sorvendo o
azul como expressão do indefinível. Vou sentindo Deus, vivendo a ideia divina.
Depois, entro na igreja de Santo Antônio, e penso em ti. Eu só sei entender
Santo Antonio atravéz da minha affeição por ti: Tua existencia se mistura com a
existencia de Santo Antonio no altar. Rezando, eu converso também contigo, rezo
pra ti, conversando com Santo Antonio. Santo Antonio está em nossa vida como um
amigo invisível que só pode fazer bem. A gente tem desses amigos, habitantes do
outro mundo" Trecho de carta de Francisco para Maria de 25/07/1933,
Porto Alegre.
O fato de ser redutível
a um espaço geográfico tangível não impede que a cidade abrigue imaginários,
cuja força de expressão pode ser experimentada quando emerge dessas fontes. Mas
tal leitura depende um pouco de nós, é verdade, de certa disposição de nossa
vontade, de certa perversão de nossa razão, por contágio sugestivo, quem
sabe... Ler esta carta e tentar acostumar-se a passear aos domingos por Porto
Alegre, em 1933, descer de um bonde bem na ponte da Azenha, aquela onde
começara a Guerra dos Farrapos há então quase cem anos, e seguir os passos do
pacato Francisco até o Pão dos Pobres, entrando numa igreja onde Maria disputa
lugar com Santo Antônio sobre o altar. Nada mais cotidiano e, paradoxalmente,
nada mais extraordinário. Porque o dia a dia pode estar repleto dessa
propriedade mágica que encanta suas ruas, seus rios, que diviniza altares,
ainda que profanando-os, graças às eternas indulgências concedidas pelo amor.
Cidades são, sim, fenômenos culturais por excelência e talvez seja preciso
naturalizar-se porto-alegrense para alcançar essa cidadania.
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