segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Clóvis Bevilacqua e o Código Civil Brasileiro de 1916

Fon-Fon! Rio de Janeiro, ano X, n. 1, 1° jan. 1916, p. 49


Clovis Bevilacqua


Clovis Bevilacqua nasceu em 4 de outubro de 1859, em Vila Viçosa, Ceará. O destino, que lhe reservou a imortalidade na cadeira n. 14 da Academia Brasileira de Letras, da qual foi um dos 40 fundadores, fez dele um destacado jurista. Coube-lhe, ― talvez como feito de maior alcance histórico , na gestão de Campos Sales, por convite do então Ministro da Justiça Epitácio Pessoa, em 1899, a autoria do projeto do primeiro Código Civil Brasileiro, concluído em 1900, mas que só viria à luz em 1916. A demora merece algumas considerações, justificadas, mesmo aqui, tanto pela relevância dos personagens implicados quanto pela dimensão que o assunto tomou.


O projeto do Código Civil e a polêmica com Rui Barbosa


É que o projeto, encaminhado ao Congresso Nacional, teve como relator, no Senado, Rui Barbosa, que demorou longo tempo para concluir seu parecer, ocupando-se, ao que parece, menos da matéria jurídica do que da gramatical, a ponto de essa circunstância ter sido considerada “um mistério para o historiador” (MAGNE, 1949, p. XV). Examinando seu parecer, tomado às suas obras completas publicadas em 1902, encontra-se que, dirigindo-se aos senadores da Comissão, se disse impressionado pela negligência da forma, que se interpunha entre ele e o legislador como um véu ou mesmo um tropeço:


Quando a frase é simples e pura, através dela penetra diretamente a inteligência ao encontro do pensamento escrito. Mas se ele se desvia da expressão natural e correta, forçosamente se há-de transformar a leitura em tedioso esforço de crítica e decifração, a que a redação das leis não deve expô-las, se as quer entendidas e obedecidas.
Aos meus primeiros reparos, supus não passassem de leves e raras jaças na superfície de imensa gema despolida. Mas tanto se repetiam, que principiei a assinalá-las para orientação minha, e afinal não sei se houve página da brochura, onde não tivesse que notar. Compreendi então que ao trabalho jurídico, vasto e notável, bem que defeituoso e incompleto, da câmara trienal, estava por dar ainda, quase inteiramente, a mão-d'obra literária. (BARBOSA, 1949, p. 1-2).

Mesmo as discussões a propósito da forma chegavam à imprensa. Assim a manifestação de Candido de Figueiredo (1913, p. 8) no Jornal do Comércio, sobre adjetivos advérbios na língua portuguesa. Ele relata-nos que Ruy teria observado não ser razoável a substituição do adjetivo adverbial independente por independentemente pretendida por Clovis, evitando-se a forma puramente adverbial.
As críticas de Ruy repercutiam, portanto. Clóvis, inconformado, chega a escrever um livro a propósito das críticas, em cujo prólogo, registra:

Por um lamentavel desvio da critica, versou a discussão muitas vezes entre nós, sobre questões de estylo e grammatica. Fugi o mais possivel de envolver-me nessa contenda bysantina que um só resultado poderia ter: ― o de perdermos um tempo consideravel e precioso, si não a opportunidade de obter a passagem do Codigo civil no Congresso. Mas era impossivel ficar quieto, imperturbavel, quando a picareta impiedosa, derrubando a caliça e levantando nuvens de poeira fingia estar solapando a construcção (BEVILACQUA, 1906, p. X).

Todavia, se aproximarmos bem os fatos, não parece razoável supor que a oposição ferrenha de Ruy à aprovação do projeto tenha se devido, exclusivamente, às suas discordâncias quanto à forma. Considere-se, a propósito que “Clovis Bevilacqua recusou ser ministro do Supremo (por duas vezes), ser governador de seu Estado e, por fim, a representar o Brasil em Haia. Rui Barbosa acabou sendo o representante do Brasil naquela conferência” (NEDER, 2002, p. 7). Tentador, então, especular se “tal fato, também seguido do convite e aceitação por parte de Rui Barbosa para comparecer ao Congresso de Haia, servem-nos como indícios desses sentimentos e ressentimentos aqui analisados” (RODRIGUES, 2011, p.4).
Seja como for, ao menos é preciso considerar que houve ainda obstáculos de outra ordem, que não a gramatical, que Ruy não hesita em arguir. Assim, por exemplo, a publicação no matutino carioca “A Época”[1], de circulação diária, lemos sobre o que teria sido a formidável oração de Rui proferida véspera, diante do Senado, a propósito do Código, ao analisar e apreciar a situação política. O título da matéria é longo. Dir-se-ia pomposo, tão ao gosto da época: “No Senado o sr. Ruy Barbosa conclue sua formidavel oração. A proposito do Codigo Civil, analysa e aprecia á situação politica, perorando brilhantemente” (NO SENADO, 1912, p.5). Rui, que se atrasara, inicia seu discurso de duas horas, criticando a “celeridade com que se procura fazer votar o projecto” (id., Ibid.). Ele também teria analisado a situação que considera anárquica e que o país vinha atravessando, imprópria, portanto, à codificação de leis. A longa fala detém-se sobre as experiências históricas de outras nações relativas à codificação de suas leis civis: a da França, menos demorada, com Napoleão; as melhores, Alemanha e Suíça. Rui insiste no fato de que a celeridade que se desejava então dar à votação era absurda. “Cada um dos codigos civis custou destarte ao seu paiz quase um quarto de seculo de assiduo e continuo labor” (id., ibid.). Ele não hesita em qualificar a pressa como obsessão, ideia fixa, mesmo uma monomania de celeridade.
Mas havia, na contramão, interesse na celeridade. Em 7 de fevereiro de 1913 lia-se no Correio Paulistano que o marechal Hermes da Fonseca assinara, naquela mesma data decreto para convocação extraordinária do Congresso Nacional para reunir-se no dia 2 de abril vindouro, em sessões extraordinárias provocadas pela “urgencia que tem o Congresso de ver discutido e approvado o Codigo Civil Brasileiro” (CONVOCAÇÃO, 1913). Nas muitas sessões públicas que se seguiram, Clóvis defendeu seu trabalho.
Dias antes da transformação do anteprojeto no Código Civil Brasileiro que vigorou até 2002, em 1º de janeiro de 1916, Paulo de Lacerda (1915, p. 3), publica, no dia de Natal, artigo que repercutiu mesmo passadas quase duas décadas de sua publicação[2]. Tratou-se de uma longa síntese que enfatiza o estado no qual se encontrava a legislação civil: “Afogada no accumulo, cada vez maior, de uma legislação polychroma, confusa e contradictoria, que se vinha amontoando desde seculos, em sahir da tão mortificate balburdia consistia uma das suas arentes aspirações” (id., ibid.). O articulista trata então das quatro tentativas anteriores de codificação[3], até que, em fins de janeiro de 1899, Campos Salles retoma a ideia do Código e nomeia, para redigir o projeto que lhe serviria de base, o jurista Clóvis Bevilacqua “que desde alguns anos vinha logrando saliente posição entre os juristas patrios” (id., ibid.). Sua escolha, assim, teria sido acertada, porque

[...] o eminente professor da Faculdade de Direito do Recife, alem de possuir, já naquella época, vasto cabedal de estudos, cimentado pela argamassa preciosa do traquejo adquirido em assíduo magisterio, é de alma refractaria ás vanglorias do espirito, ao mesmo tempo combativo e tolerante, sem arestas ferinas e sem opiniões irreductiveis, e carater que não se sente apoucado reconhecendo o melhor (LACERDA, 1915, p. 3).

Muitos elogios, sim. E merecidamente, diga-se.



[1] Bruno Brasil (2014), conta-nos que “A Época” circulou no Rio de Janeiro de 1910 a 1919 e se posicionava contra hábitos que considerava provincianos e que atribuía à imprensa de então. Refinada e galante, não apenas publicava artigos sobre moda e cultura, mas ainda tratava de questões sociais e trabalhistas. Fazia oposição ao governo de Hermes da Fonseca e do PCR (Partido Republicano Conervador), particularmente em 1913, quanto intensifica os ataques ao PRC. Em 1914, já sob o governo de Wenceslau Brás, aplaudia a atuação de Rui Barbosa. [BRASIL, Bruno. A Época (Rio de Janeiro, 1912). BNDiginal, Artigos. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-epoca/>. Acesso em: 25 nov. 2018.]

[2] A Revista Fon-Fon! ― semanário que circulou no Rio de Janeiro de 1907 a 1945, de amplo repertório temático para registro de hábitos socioculturais do que fora a belle époque brasileira (ZANNON, 2005, p. 18) ― publicou, em 1933, artigo no qual Hormino Lyra (1933, p. 50) qualifica como magistral esse artigo que Paulo Lacerda escrevera em 1915.[ZANON, Maria Cecilia. Fon-Fon! – Um Registro Da Vida Mundana No Rio De Janeiro Da Belle Époque. In: UNESP – FCLAs – CEDAP, v.1, n.2, 2005 p. 18. Disponível em: < file:///C:/Users/user/Downloads/18-644-1-PB%20(1).pdf>. Acesso em: 28/11/2018.] [LYRA, Hormino. Commentarios. Fon-Fon!, Rio de Janeiro, ano XXVII, n. 6, 11 fev. 1933, p. 50.]

[3] A primeira, de Teixeira de Freitas, em 1859, que não teria passado de um longo e exaustivo esboço, com quase cinco mil artigos e, ainda assim, incompleto mesmo em 1872, quando é dado por pronto. A segunda foi de Nabuco de Araújo, que faleceu, deixando um rascunho que apenas ele poderia interpretar. A terceira, de Felício dos Santos, e teria consistido em apontamentos oferecidos ao governo em 1881, mas que, submetidos a exame, foram censurados por uma Comissão Ministerial nomeada por Souza Dantas e composta, entre outros, por Lafayette Rodrigues Pereira. Pelo parecer da comissão, o documento carecia de método apropriado à codificação. Ainda assim, a tentativa de aprovação prossegue até que o próprio Felício, em 1882, retira o projeto da comissão, oferecendo-o à Câmara dos Deputados onde, apesar da aprovação de diversos deputados, morre esquecida na Comissão de Justiça. Em 1889, Cândido de Oliveira, então Ministro de Justiça, nomeia outra comissão para tratar do assunto, mas ela é dissolvida com o advento da República. Assim, em julho de 1890, a tarefa é conferida a Coelho Rodrigues, com prazo e três anos. Apresentado o projeto em 1893, o projeto é rejeitado por Floriano Peixoto. No Senado, para onde foi por oferecimento do autor, o projeto suscita debates que resultam em sua adoção, porém, uma vez remetido à Câmara, não teve seguimento “dando pasto a discussões azedas e a forte polemicas” (LACERDA, 1915, p. 3), em que pese a defesa de Coelho Rodrigues “com energia e brilhantismo” (id., ibid.). O trabalho de 2.734 artigos teria sacrificado as tradições jurídicas do pai e assimilado direito estrangeiro. Todavia, o cronista salienta que, caso submetido a cuidadoso exame, poderia atender às reivindicações da crítica. Mas assim não foi e “desfez-se a quarta tentativa, castigada sob os vagalhões da polemicas, não raro, mais apaixonadas que sinceras” (id., ibid.). [LACERDA, Paulo de. O Codigo Civil (synthese). Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 89, n. 358, 25 dez. 1915, p. 3.]

Nenhum comentário:

Postar um comentário