segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Dedicatória

Resumo do Curso de Psychologia de W. Radecki autografado pelo autor.
Exemplar de Rogério Centofanti. 


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Defesa Social


Essa expressão, quando empregada no contexto social do final do século XIX início do XX, deve ser compreendida em contexto bastante específico. Embora merecendo análise mais detalhada, pode-se, muito resumidamente, dizer que a defesa social tornara-se o fundamento da penalidade, quando, graças à antropologia criminal e à escola positiva que ela inspirara, o livre arbítrio foi questionado e colocado em dúvida, abalando assim a viga mestra da chamada escola clássica, que condicionava a aplicação da pena ao indivíduo apenas quando este tivesse consciência do caráter deletério das ações criminosas que eventualmente praticasse.

Lei da unidade mental coletiva


Na primeira parte de sua obra clássica intitulada “Psicologia das multidões”, Gustave Le Bom (1909, p. 12) emprega, com grifos, aliás, essa expressão: lei da unidade mental das multidões. A tal lei estariam submetidas as multidões, eis que formariam um único ser, porque, — dirá ele —, em determinadas circunstâncias, e apenas nessas certas circunstâncias, — acentua —, uma aglomeração humana adquiriria características novas, que se mostrariam muito diferentes daquelas particulares aos indivíduos que compusessem a aglomeração. Suas personalidades conscientes como que se desvaneceriam, enquanto seus sentimentos e ideias se orientariam rumo a uma mesma direção. Formar-se-ia assim “uma alma coletiva, transitória sem dúvida, mas apresentando características muito nítidas” — afirma, acrescentando a seguir que, na ausência de expressão mais adequada, haveria aí uma multidão organizada, ou, preferindo-se, “uma multidão psicológica” (id. Ibid.).

Fonte: Le Bon, G. (1909). Psychologie des foules. Paris: Alcan.



terça-feira, 11 de dezembro de 2018

REVISTA VIDA BRASIL

Coisas que só acontecem com bibliófilos

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

C’est la vie! Chegou o dia em que o desapego se impôs. Tive de me desfazer da metade de minha biblioteca. Imposição cruel. Sacrifiquei boa parte da literatura, todas as enciclopédias ― a literária, inclusive, com seus mais de vinte volumes ―, e todos os livros dedicados a temas, digamos assim, mais leves. Foram diversos carregamentos de pesadas caixas que vi sendo levadas para longe de mim, deixando-me desolada. Em compensação, ― porque parece que sempre é preciso buscar desesperadamente recompensas aos nossos sacrifícios ―, a renúncia me impôs uma revisão geral de tudo. 

Coisas que só acontecem com bibliófilos


Procedi a um verdadeiro inventário do que possuo. Disputando o espaço centímetro a centímetro, cada um dos livros que me restaram teve de encontrar um lugar certo e inteiramente seu, vizinhando com seus pares, uma vez que tudo agora precisa estar muito organizado.
Essa dolorosa perda de muitos deles só reforçou minha ligação com os remanescentes. Há livros em praticamente todas as peças da casa. São os sobreviventes, brinco. E, se eu já mantinha grande proximidade com eles, agora essa relação se tornou absolutamente promíscua. Retomei-os. Rever, reler, reparar, colar lombadas, encapar, redescobrir. A separação de uns provocou a reaproximação dos demais e ainda felizes reencontros. Como o de hoje, por exemplo, com um livro adquirido em São Paulo, 2007, mês de julho. ― Já faz tanto tempo? Sim. ― Presente do Rogério, que me levara então ao sebo doSeu Luis, gentilíssimo cavalheiro português, com todas as suas décadas como livreiro. Foi ele próprio que, tomando da escada, buscou, no alto de uma das muitas prateleiras de seu enorme estabelecimento, um livro bastante antigo na aparência, talvez adivinhando em mim alguém capaz de dar valor a algo tão anacrônico, definitivamente.


O livro é de 1864 e foi editado na França. Trata-se do segundo volume de Vies des saints avec le martyrologe romain et réflexions morales en forme de lecture de piété pour chaque jour de l’année.Traduzindo: Vidas dos santos com o martirológio romano e reflexões morais em forma de leitura de piedade para cada dia do ano.  A obra foi aprovada pelo bispado, e é de autoria do Abade Caillet, antigo professor do Seminário de Langres. Esse segundo volume, com suas 680 páginas, é dedicado aos mártires cristãos que marcam cada dia do calendário dos meses de abril, maio e junho. Naturalmente, na prática, inencontráveis os outros volumes da mesma obra. Mas a este, é possível consultá-lo como a um calendário, ainda que incompleto. É sempre tentador também abri-lo ao acaso, como se fora um oráculo, e realizar  ― por que não? ― leituras edificantes ou, no mínimo, lúdicas.
Foi assim, ao sabor do acaso, que encontrei uma referência a São Bonifácio, apontado como o mártir cristão festejado no dia 14 de maio. Descubro que ele foi supliciado em Tarso, na antiga Cicília romana, — atual Turquia —, sob Diocleciano. Levado às portas de Roma, foi enterrado na via Latina. Sua história, ainda que sob o estatuto da lenda, me pareceu muito interessante. Divido-a com vocês.
Pois bem. O ano é 304 de nossa era, e a cidade é Roma, onde então vivia Aglaia, uma linda mulher. Uma mulher, aliás, cujas qualidades não se limitavam à beleza, porque era de origem ilustre e também muito, muito, muito rica. Para administrar sua imensa fortuna, valia-se de mais de sessenta intendentes, todos comandados por Bonifácio que, como eles, era também servo de Aglaia. Tão poderosa era ela que, por três vezes, patrocinara jogos públicos naquela cidade. Aglaia vivia, enfim, em meio ao luxo e à opulência que excitam as paixões.
Luxo e opulência na Roma antiga dos anos 300? Instigante, penso eu, até porque em seguida descubro que Bonifácio e Aglaia mantinham entre eles um comércio carnal em tudo reprovável. Sei... Impossível não pensar que, sob alguns aspectos, o mundo mudou bem pouco. Bonifácio, enfim, era amante de sua senhora. Além disso, ele costumava entregar-se também ao jogo, ao vinho e a todas as depravações. Divago por um instante, e me imagino uma leitora do século XIX, com o martirológio nas mãos, num convento talvez, descobrindo o mundo antigo e as tais depravações no livro que se propõe como leitura piedosa. Mas volto, em seguida, às páginas que agora me prendem. Diz ali que, não obstante lúbrico, apesar de voltado aos prazeres da carne e do vinho, a Bonifácio não faltavam boas qualidades. Era hospitaleiro, liberal e generoso. Se algum estrangeiro chegasse a Roma, podia contar com sua pronta acolhida, um dos encantos da hospitalidade. Sensível aos males alheios, muitas vezes ele percorria as ruas de Roma para socorrer e recolher indigentes. Era, pois, um homem de bom coração. E, muito provavelmente, bonito, penso eu, ou Aglaia não teria se interessado por ele.
Saibamos mais dessa mulher. Aglaia, apesar da fartura e dos prazeres em meio aos quais vivia, experimentava o vazio que estes, sempre transitórios, deixam na alma. — Bem, já era hora de a leitura tornar-se edificante. — Nossa heroína, entedia-se. E ela cede a uma graça interior, uma espécie de apelo divino. Por conta disso, chama Bonifácio à sua presença e lhe diz, textualmente: “Vê em que pecados caímos sem pensar que será preciso aparecer diante de Deus. Ouvi dizer dos cristãos que aquele que honrar os santos que combatem por Jesus Cristo partilharão de sua glória. Ouvi também que os servidores de Deus combatem no Oriente contra o demônio e que eles entregam seus corpos aos tormentos para não renunciarem à sua fé. Vá, pois, e traga-nos relíquias de alguns santos mártires, para que nós os honremos e para que sejamos salvos por sua intercessão.” Bonifácio, então, — pelo visto muito obediente aos desejos de sua senhora —, toma boa quantidade de ouro “para adquirir as relíquias e para dar aos pobres” e dispõe-se a partir.

Foram doze cavalos, três liteiras e muitos perfumes para honrar com eles as santas relíquias. Assim equipado, ele parte, dizendo antes a Aglaia: “Senhora, se eu encontrar relíquias, eu as trarei. Mas se as minhas vos chegarem, sob o nome de mártires, vós as recebereis?” Ao que ela lhe respondeu: “Deixa teus prazeres e pensa que vais procurar as relíquias dos santos. Para mim, pobre pecadora, espero pouco. Rogo ao Deus todo-poderoso que tomou a forma de escravo e derramou seu sangue por nós, que envie seu anjo diante de ti, te conduza, e realize meus desejos sem olhar meus pecados.”
Bonifácio partiu. Penso nos caminhos do Império, nos cavalos e nas liteiras. E percebo uma rápida, quase instantânea, transformação em nosso herói. Ao longo do caminho, ele dizia: “É justo que eu não beba vinho nem coma carne, porque, por indigno que eu seja, devo portar as relíquias dos santos.” A seguir, erguendo os olhos aos céus, acrescentou: “Senhor Deus todo-poderoso, pai de vosso único filho, dirigi minha viagem, a fim de que vosso santo nome seja glorificado por todos os séculos.” Enfim, chegaram a Tarso, onde a perseguição aos cristãos se mostrava particularmente violenta. Dirigindo-se aos seus companheiros, Bonifácio pede-lhes que procurem abrigo e que façam repousar os cavalos, porque ele iria imediatamente ao encontro do que mais desejava. E vai sozinho, então, ao lugar dos combates. O espetáculo que se ofereceu a seus olhos era, porém aterrador: santos mártires supliciados.
Um, pendurado pelo pé, sofria com o fogo aceso sob sua cabeça. Outro, amarrado pelos membros, era esticado em quatro direções. Outro ainda era serrado pelos carrascos. Havia o que teve as mãos cortadas, e o que fora colado na terra com um pé na garganta. Havia também o que tivera os membros torcidos e atados nas costas, enquanto era incessantemente espancado. Vinte cristãos eram assim atormentados. Todavia, enquanto esse espetáculo sangrento e aterrador horrorizava os espectadores, os mártires, eles mesmos aos quais se impunham tais tormentos, mantinham uma tranquilidade inalterável.

Aproximando-se de um deles, Bonifácio beijou respeitosamente suas feridas e exclamou: “Como é grande o Deus dos cristãos! Servidores de Jesus Cristo, rogai por mim, para que eu me una a vós e partilhe de vosso combate contra os demônios.” Disse-lhes ainda: “Coragem, santos mártires! Combatei generosamente! O combate é breve, e a recompensa é eterna.”
Simplício, o governador, percebendo a presença de Bonifácio, perguntou-lhe: “Quem é este que zomba dos deuses e de mim? Que ele seja capturado e conduzido a meu tribunal.” E assim foi. Acrescentou depois: “Quem és tu que desprezas a grandeza de meu tribunal?” Bonifácio: “Já vos disse. Sou cristão. Se perguntais meu nome, chamam-me Bonifácio.” Disse-lhe o juiz: “Antes que eu te faça atormentar, aproxima-te e sacrifica aos deuses.” Bonifácio: “Eu vos digo ainda que sou cristão e que não sacrifico a vossos demônios.” O juiz, enfurecido, afiou ferros e os fez introduzir por debaixo das unhas das mãos de Bonifácio, que sofreu pacientemente olhando para o céu. Ele não cede. Ordenam-lhe que abra a boca, para que nela fosse vertido chumbo derretido. Inútil. Bonifácio diz então: “Senhor Jesus, filho do Deus vivo, vinde em meu socorro e não sofrais porque fui derrotado.” Leio assombrada que o chumbo derretido não lhe causou mal algum, e que tampouco Bonifácio sofreu quando foi atirado para dentro de uma caldeira de breu. E, — garante-nos o livro —, depois de diversos outros suplícios que duraram todo o dia até a manhã seguinte, o juiz, espantado diante dos poderes de Jesus Cristo assim como da constância do agora mártir Bonifácio, ordenou que lhe cortassem a cabeça.

Interrompo a leitura por um momento. Reflito acerca da natureza das pregações cristãs. E penso até que ponto a vida real, material, humana, deveria enfrentar esses implacáveis desafios em nome da salvação. Prossigo. Descubro que os companheiros de viagem de Bonifácio, preocupados com sua prolongada ausência, procuravam-no por toda parte, dizendo uns aos outros: “Sem dúvida está em algum lugar mal frequentado, divertindo-se, enquanto nos atormentamos a procurá-lo.” Nisso, encontram o irmão do carcereiro, ao qual indagam se acaso não vira um estrangeiro vindo de Roma, ao que ele lhes respondeu que um fora martirizado naquela manhã, sofrendo por Jesus Cristo. Ouvindo isso, os companheiros de Bonifácio retrucaram, dizendo que aquele a quem procuravam era um devasso, um bêbado, que nada tinha em comum com os mártires. Todavia, a descrição do martirizado fora exata: um homem firme, forte, de cabelos crespos e louros, que usava um manto escarlate. Conduzidos para diante do corpo, qual não foi a surpresa dos companheiros que nele reconheceram Bonifácio.  “Servidor de Deus!” ― exclamaram chorando. — “Perdoai-nos o mal que pensamos de vós!”. Embalsamaram-no depois, e, envolvendo-o em linhos preciosos, retomaram o caminho de volta.

Enquanto isso, longe dali, um anjo aparece a Aglaia e lhe diz: “Aquele que era vosso escravo é agora vosso irmão. Recebe-o como vosso senhor e coloca-o dignamente. Vossos pecados serão perdoados por sua intercessão.” E assim foi. Aglaia, tocada pela mensagem, prontamente convidou eclesiásticos piedosos que trouxeram círios e perfumes. Cumprira-se o pedido profético de Bonifácio. As santas relíquias chegaram e foram colocadas em cinquenta locais ao longo da via Latina. Aglaia constrói também um oratório digno do santo mártir e, desde então, renunciou ao mundo, distribuiu suas riquezas entre os pobres e consagrou-se inteiramente a Jesus. Viveu por mais treze anos ainda, em exercício de piedade. Ela foi sepultada ao lado de Bonifácio.
Termino de ler a história e volto à realidade, depois de ter viajado no tempo e experimentado emoções que me são estranhas, a mim e a você talvez. Os livros têm esse poder de nos abstrair de nosso espaço, de nosso tempo, de nossos hábitos. Nesses percursos, todavia, a imaginação é refinada: ela pode nos levar a Roma e nos aproximar de Aglaias e de Bonifácios, em que pese os mais de mil e setecentos anos que nos separam. Fecho o martirológio, e é como se a Roma antiga por onde viajei há pouco se recolhesse, absorvida pelas páginas amareladas.  O livro volta para a estante e eu, para essa minha escrita e para você, desconhecido leitor, a quem eu confidencio que essas coisas, — acredite —, só acontecem com bibliófilos.


Autor: Maristela Bleggi Tomasini