Solidão incomoda
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
Solidão incomoda, é verdade. Mas, seguramente, não aos solitários. Incomoda aos outros. Gente que, não conseguindo aceitar o fato de que há quem prefira ficar só, procura com inacreditável persistência inventar mil motivos para o que entendem como uma espécie de patologia social daquele que, sim, gosta de ficar sozinho. Inclusive no Natal. Inclusive no Ano Novo. Inclusive no próprio aniversário. Inclusive quase sempre.
Bem, há quem duvide. Parecem convictos de que o solitário sofre. Ou porque merece ou porque se ressente do mundo e, egoísta, isola-se. São os que se ofendem com a solidão dos outros. Ficam irritados pelo fato de alguém não se encantar diante da sedutora pirotecnia social que se abre ao tal mundo melhor e não parecer nem um pouco maravilhado com o ruidoso espetáculo das cores brilhantes da meia-noite. Sentem-se pessoalmente hostilizados com uma escolha que lhes é incompreensível, embora alheia. E, como se trata de gente que faz dos próprios valores a medida do mundo, o melhor é deixá-los crer no pior acerca de nós. Aliás, considero uma sorte tremenda ser vista por gente assim, no mínimo, como uma pessoa esquisita e excêntrica. Gente mais chata! Pensam que são pessoas tradicionais quando, na verdade, cultuam apenas um conservadorismo rançoso que coroa uma visão de mundo rasa e simplista. Jamais entenderiam que as verdadeiras tradições são muito mais profundas do que a superficialidade de gestos copiados e repetidos. É mesmo bem o contrário do que eles pensam: apenas aquele que é seguro de sua pertinência no mundo, seguro de sua própria identidade, de sua originalidade irredutível, — como diz Gabriel, um querido amigo meu —, é que pode, sim, preferir a solidão.
Mas nem todos duvidam. Há os que se explicam a solidão do próximo. Quando afirmo que solitários não apenas gostam, mas até preferem a solidão, eles discordam veementemente. Alguns entendem que se trata de conformismo. Por sua lógica concluem que o coitado que ficou sozinho não tinha para onde ir. Mostram-se mesmo penalizados e querem parecer compreensivos. Eles tentam sinceramente entender a razão pela qual alguém opta por ficar em casa, mesmo podendo estar na praia, por exemplo, jogando-se contra sete ondas, vestindo branco por cima e amarelo por baixo, espremendo-se na multidão, comendo lentilhas, bebendo, apreciando os fogos! Como assim não gostar de tudo isso? Daí, — por respeito e não sem algum custo emocional —, insinuo que vou para algum lugar que não posso revelar. Dou a entender que tenho um encontro e peço discrição. Pronto. É como mágica. Sempre funciona. Trocamos olhares cúmplices e tudo se resolve da forma mais educada possível.
Mas entre os que duvidam e os que pensam que explicam a solidão dos outros, há ainda os raros simpatizantes que fazem o mesmo ou que certamente o fariam se pudessem. Aqueles que, enfim, invejam o solitário. Nem todos podem se dar ao luxo da solidão. O mundo tem seus tentáculos. Ele não é apenas cheio de gente, mas ainda repleto de significados, entremeado de símbolos. Há uma semiologia comportamental, um dever ser que funciona à maneira do trânsito: com sinais abertos, fechados, multas e desastres. O solitário é aquele que vai pelos atalhos, quando não move montanhas, não necessariamente pela fé. Afinal, obstáculos se contornam ou se explodem mesmo. Assim como para seguir em relativa segurança em meio ao trânsito é preciso conhecer os sinais, para viver socialmente também é preciso compreender tanto as regras gerais como ainda perceber, individualmente, os demais. Tarefa, aliás, desafiadora. Compreender o mundo e observar os outros. Inspirar-se até em tantos personagens que podem ser muitas vezes encantadores, outras vezes, até desconcertantes. A fauna e a flora social vicejam por séculos e mais séculos sob o firmamento desse mundo que, recentemente, parece que não teve outra opção que não a de se achatar. Eu mesma não esperava viver para ver a Terra ficar plana. Mas parece que ficou. Isso, entre outras novidades, ainda tem sobre mim um efeito impactante que, felizmente, a solidão abranda.
E não se enganem. Só porque o solitário consegue perfeitamente bem e, aliás, com algum sucesso, circular por aí, tal não significa que ele prefira viver socialmente. Solidão é escolha ou deverá ser lida como abandono. Solidão é algo que se conquista, e é preciso investir pesado para obter esse habeas corpus, verdadeira alforria da qual nasce a liberdade, condição criadora não compartilhável, berço da inspiração.
Experimentar o silêncio e a solidão, homenagear o tédio, mesmo quando o mundo lá fora festeja qualquer coisa, é estar perto de si. Escutar-se. Escrever e ler. Porque escrever é, por certo, socializar-se no tempo e no espaço, muito além do bairro, da paróquia, da vizinhança. É compartilhar certezas e confessar incertezas. Ler é deliciar-se com a presença de outros que trazemos para muito perto de nós. Há ainda a música. E assim, aos poucos, porta trancada atrás da gente, todo o espaço da casa sossega. As janelas fechadas deixam passar apenas o mínimo de claridade. As luzes indiretas das luminárias antigas encarregam-se dos detalhes. O relógio parado não bate mais nem à meia-noite nem ao meio-dia. Os livros, todos e cada um, desfilam suas lombadas, e eu hesito sobre com qual deles vou passar as próximas horas mágicas.
Sim, porque é feriado. O mundo lá fora está ocupado com comida, bebida, roupas, ruídos, a loteria, as simpatias, os relógios, o branco, o amarelo, os santos e os orixás, as dívidas, os créditos, as promessas, o grande amor que não era o verdadeiro e o próximo que virá, para sempre, no ano que vem. É preciso ser visto feliz e sorrindo na companhia dos amores e dos amados. A sagrada família precisa se mostrar unida. Que assim seja. Enquanto eles se embriagam dessa felicidade ostensiva, eu, sozinha, me vejo cercada do requintado conforto que pude honestamente conquistar. Honestamente, porque tudo aqui é de verdade: a minha Coca Zero estocada aos litros para que eu não precise sair por pelo menos 48 horas, Balzac na saleta em companhia de Maupassant que já despertam do sono eterno para terem comigo por horas de leitura. Há o café especial para quando este calor aplacar e também alguma comida na geladeira para quando der fome. Há também tintas, lápis de cor e nanquim para que eu possa brincar de rabiscar desenhos inacabados que um dia terei outra vez a paciência de terminar. Enfim, o perfeito kit de sobrevivência para que eu consiga, mais uma vez, chegar ilesa ao ano que vem.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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