A condição de produto de gente comum, que
viveu uma vida comum e que produziu escritos que teriam por destino o lixo,
remete a uma descartabilidade absoluta, e é isso o que vai conferir à fonte, em
sua singularidade, a pertinência ao âmbito do que Perec chamou de
infra-ordinário, algo que, não obstante sua trivialidade, mesmo sua
futilidade, pode ser perfeitamente bem
compreendido na perspectiva literária que este autor soube tão bem descrever a
partir de sentimentos colocados em primeira pessoa. Perspectiva de alguém que
nos fala dos jornais que o entediam, que nada lhe ensinam. De alguém que se
pergunta onde estaria todo o resto, todo o resto que vivemos: o banal, o
cotidiano, o que é comum, evidente, habitual. Esses pequenos nadas, prosaicos,
que não indagam nem respondem, teriam uma densidade talvez tão próxima de nós
que, anestesiados, jamais somos levados a interrogá-los, pois aí vivemos sem
pensar, como peixes que ignoram o aquário, sendo preciso dotá-los talvez de uma
atenção especial que lhes permitisse a sua descoberta. E como deveríamos
proceder então para interrogar este habitual que nos anestesia, como se
dormíssemos nossa própria vida em um sono desprovido de sonhos? Onde estaria
nossa vida, nosso corpo e nosso espaço? Como falar das coisas comuns? Como
persegui-las, desalojá-las, desencravá-las da ganga na qual restam incrustadas?
Como dar-lhes um sentido e uma linguagem, na medida em que elas falariam,
enfim, daquilo que é e daquilo que seríamos? Talvez fosse o caso — arrisca
Perec — de se fundar uma nova Antropologia capaz de falar de nós e de procurar
em nós aquilo que, por tanto tempo, pilhamos aos outros, abandonando o exótico
pelo endótico.
PEREC,
Georges. L’Infra-Ordinaire. Paris:
Editions du Seuil, 1989, p.10-11.
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