sábado, 24 de julho de 2021

Quando a fonte é muito pessoal...

 

A condição de produto de gente comum, que viveu uma vida comum e que produziu escritos que teriam por destino o lixo, remete a uma descartabilidade absoluta, e é isso o que vai conferir à fonte, em sua singularidade, a pertinência ao âmbito do que Perec chamou de infra-ordinário, algo que, não obstante sua trivialidade, mesmo sua futilidade,  pode ser perfeitamente bem compreendido na perspectiva literária que este autor soube tão bem descrever a partir de sentimentos colocados em primeira pessoa. Perspectiva de alguém que nos fala dos jornais que o entediam, que nada lhe ensinam. De alguém que se pergunta onde estaria todo o resto, todo o resto que vivemos: o banal, o cotidiano, o que é comum, evidente, habitual. Esses pequenos nadas, prosaicos, que não indagam nem respondem, teriam uma densidade talvez tão próxima de nós que, anestesiados, jamais somos levados a interrogá-los, pois aí vivemos sem pensar, como peixes que ignoram o aquário, sendo preciso dotá-los talvez de uma atenção especial que lhes permitisse a sua descoberta. E como deveríamos proceder então para interrogar este habitual que nos anestesia, como se dormíssemos nossa própria vida em um sono desprovido de sonhos? Onde estaria nossa vida, nosso corpo e nosso espaço? Como falar das coisas comuns? Como persegui-las, desalojá-las, desencravá-las da ganga na qual restam incrustadas? Como dar-lhes um sentido e uma linguagem, na medida em que elas falariam, enfim, daquilo que é e daquilo que seríamos? Talvez fosse o caso — arrisca Perec — de se fundar uma nova Antropologia capaz de falar de nós e de procurar em nós aquilo que, por tanto tempo, pilhamos aos outros, abandonando o exótico pelo endótico.

PEREC, Georges. L’Infra-Ordinaire. Paris: Editions du Seuil, 1989, p.10-11.


Nenhum comentário:

Postar um comentário