sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Arquivo de Lysia




Por sua singularidade, o arquivo de Lysia não se presta a uma função sistemática, exceto aquela que, no passado, lhe imprimiu sua empreendedora e que persiste ainda em sua organicidade[1]. A questão, parece, poderia estar relacionada ao que Baudrillard observou com relação ao objeto marginal e ao objeto antigo, que escapariam a qualquer sistematização. Singulares, barrocos, folclóricos, exóticos, antigos ― enumera ele ― tais objetos contradiriam exigências de uma ordem funcional e responderiam a desejos de outra ordem: testemunho, lembrança, nostalgia, evasão. “Esses objetos ― acrescenta ― por diferentes que eles sejam, também fazem parte da modernidade, e tomam aí um duplo sentido” [BAUDRILLARD, Jean. Le système des Objets. Paris: Gallimard, 1968, p. 103]. Isso ocorreria, particularmente, quando viessem a integrar um sistema cultural diferente daquele que lhes deu origem. Passariam assim a responder a outras necessidades, num processo equivalente à supressão do tempo, ao menos na ordem do imaginário.





[1] “Organicidade é o termo que designa, na área arquivística, a qualidade segundo a qual os arquivos refletem a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora, em suas relações internas e externas” (CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Os arquivos e o acesso à verdade. In: SANTOS, Cecília MacDowell et al. (org). Desarquivando a ditadura: memória e justiça do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009a, v.2, p.424-443).

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Ir e Vir na Luz


Cartão de Felicitações


Arquivos de família guardam tantas coisas... Pode-se muito falar na variedade e no inusitado de certos achados que neles se encontram, mas nada substitui a imagem. Neste caso, um cartão onde colegas de trabalho da noiva desejam felicidades ao casal, cujas núpcias aconteceram em 1956. 

domingo, 20 de dezembro de 2015

Panoplia

Lançada em São Paulo, 1917, funcionava na rua Direita e era impressa pela Casa Duprat.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Regras de Etiqueta

De mãos dadas com os preconceitos e as discriminações, as regras de etiqueta marcam territórios onde hierarquias são estabelecidas, e embora não correspondam a nenhum formalismo de ordem legal, nem por isso são menos rigorosas. Não são promulgadas nem assinadas por quem de direito, mas emanam de instâncias de controle onde o poder existe de fato. Enquanto a norma jurídica é coercitiva na ordem das punições previstas em lei, a norma de etiqueta, quando violada, tem consequências bem diferentes, que se dão muito mais perto dos fatos sociais menos relevantes e mais corriqueiros. Entre subtrair um objeto alheio, e não manifestar-se formalmente à vista de um convite assinalado com as iniciais R. S. V. P, vai uma grande distância a separar estas duas instâncias paralelas, ambas encarregadas de controlar e de constranger ― o vigiar e punir de Foucault ―, cada qual a seu modo. 

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Ces bonnes lettres

DAUPHIN, Cécile; LEBRUN-PÉZERAT, Pierrette; PAUBLAN, Danièle. Ces Bonnes Lettres. Una correspondence familiale ao XIX siècle. Paris: Albin  Michel, 1995,

La première qualité de la lettre est d'être 'bonne'. Banalité qui énonce avec force qu'elle convient, que'elle répond à une attente, qu'elle est appropriée à la situation et conforme aux besoins. Mais banalité que appelle une gamme de varientes autour de cette appréciation majeure du plaisir de recevoir. 'Petite, belle, jolie, charmante, amaible' la 'bonne' lettre séduit par son apparence (p. 141).
....
En dehors des canons de la littérature et des sentiers battus de l'art épistolaire, l'appréciation de la lettre familière dépend d'abord de sa valeur subjective. Le jugement esthétique doit être affirmé, en dehors de tout preuve. Indépendamment de ses qualités littéraires, la 'bonne' lettre est 'belle' et vice versa (p.141).


quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Venho por meio desta

Cartas Perdidas


ARTIÈRES, Philippe; LAÉ, Jean-François. Lettres perdues. Écriture, amour et solitude, XIXe-XXe siècle La vie quotidienne, Paris: Éditions Hachette, 2003, 268 p.

Ah, esses arquivos perdidos, que atravessam nosso caminho, que desviam nosso olhar para esses pequenos nadas. Fragmentos singulares cujo encanto inspira alguns de nós. 

Afinal: "Existiriam palavras das quais nada se puderia extrair?" (p. 9).


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Sociabilidade: cenas do amor

O conhecido compositor italiano Leoncavallo foi o heroe de uma triste historia de amor
Uma menina norte-americana, miss Alice Moffat, filha d'um rico pesquisador de ouro, teve o capricho de seguir a carreita teatral. Veio a Paris representar n'um café-concerto. Mas as pessoas de sua amizade observaram-lhe que se persistisse n'esse caminho nunca entraria um grande theatro.
Ella então deixou a scena e entregou-se á pintura.
Collossalmente rica, generosa, não tardou a crear numerosas sympathias no mundo das lettras e da arte e, n'uma reunião de artistas, em Paris, encontrou-se com Leoncavallo, por quem concebeu logo grande paixão. Soube, porém, que elle era casado. Ficca n'um imenso desespero e, para abafar a sua paixão, recorreu ás viagens, andando de cidade em cidade, sem se deter em nenhuma.
Ultimamente, em Genebra, resolveu acabar com a vida: collocando diante de si o retrato do compositor, absorveu o conteúdo de um frasco de laudano, morrendo uma hora depois.

A Federação. Orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 22 set 1899. Anno XVI.

sábado, 17 de outubro de 2015

Sociabilidades: cenas do amor

Scenas do amor

As muralhas de Cambrai foram ha pouco theatro de um terrivel drama de amor.
Dois namorados, ambos de boas familias, um elegante rapaz e uma formosa e interessante menina, perdidos do amor, tinham-se dado rendez-vous no jardim publico.
Passeiaram algum tempo na grande avenida, depois afastaram-se ao longo das muralhas que conduzem ás portas de Paris.
Entregues ao seus sonhos de amor, não notaram que eram seguidos.
O pai da menina ha muito que vinha atraz de ambos.
Era um homem muito conhecido e muito digno e que, com razão ou sem ella, estava persuadido de que sua filha tinha sido seduzida.
Chegados ao jardim do Regimento, subiram ambos ao parapeito para ver o que se passava, por terem ouvido um certo ruido suspeito.
Foi então que o sr. M.C., que estava armado de um rewolver, apontou-o contra o rapaz e desfechou.
A povre menina, que viu o gesto do pai, mette-se entre o seu amante e o pai, recebendo ella na face a bala e cahindo logo morta.
O pobre rapaz, ao ver sua namorada n'aquelle estado, deita-se da muralha sobre o fosso, conseguindo-se com custo ainda tiral-o vivo.
As dua familias ficaram assás consternadas.

A Federação, Orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 3 mar 1884, Anno I.

domingo, 23 de agosto de 2015

Adolph Freiherr Knigge

By Peter Nitzsche für das Bundesministerium der Finanzen und die Deutsche Post AG
(Deutsche Post AG) [Public domain], via Wikimedia Commons
Por Peter Nitzsche para o Ministério Federal das Finanças e do Correio Alemão AG
(German Post AG) [domínio público], via Wikimedia Commons

Sobre fazer história

Trecho do prefácio da edição de 1908. 
"Le present ouvrage appartient, je dois le reconnaitre, au genre de la vieille histoire, de celle qui presente la suite des evenements dont le souvenir s'est conserve, et qui indique, autant que possible, les causes et les effets; ce qui est un art plutôt qu'une science. On prétend que cette manière de faire ne contente plus les esprits exacts et que l'antique Clio passe aujourd'hui pour une diseuse de sornettes. Et il pourra bien y avoir, à l'avenir, une histoire plus sûre, une histoire des conditions de la vie, pour nous apprendre ce que tel peuple, à telle époque, produisit et consomma dans tous les modes de son activite. Cette histoire sera, non plus un art, mais une science, et elle affectera l'exactitude qui manque a l'ancienne. Mais, pour se constituer, elle a besoin d'une multitude de statistiques qui font defaut jusqu'ici chez tous les peuples et particulierement chez les Pingouins. Il est possible que les nations modernes fournissent un jour les éléments d'une telle histoire. En ce qui concerne l'humanité révolue, il faudra toujours se contenter, je le crains, d'un récit a l'ancienne mode. L'intérêt d'un semblable récit dépend surtout de la perspicacité et de la bonne foi du narrateur" 

FRANCE, Anatole. L’íle de Pinguins. Paris: Calmann-Lévy, Editeurs, 1908. Disponível em < https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Anatole_France_-_L’Île_des_Pingouins.djvu >. Acesso em 23/08/2015. (p. VIII, IX)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

1920


Valise achada

Um policial encontrou ante-hontem, á tarde, numa barca da Cantareira, em viagem para esta cidade, uma valise contendo várias peças de roupa branca para senhora, 5 amuletos, 1 baralho de cartomante, 1 caderninho de notas, 1 "pince-nez" com aros de ouro, 1 grampo de tartaruga, grampos pretos, 1 escova de dentes, 1 medalha de prata, 1 atacador, 1 par de meias pretas, 1 nota de 2$000 e 1 cartão de visita pertencente a D. Maria Diniz Bezerra, residente á rua S. José n. 169, no Fonseca.
A valise ficou depositada no gabinete do Chefe de agentes, na Policia Central, onde póde ser procurada.

Fonte: O Fluminense. Rio de Janeiro, Nyctheroy, 2 jul 1920, n. 11.356, Anno 43.

Tipos Documentais

Cupons de sorteio existentes no arquivo de Lysia.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

1924



O representante do fascio de S. Paulo recebido por Mussolini

Communicam de Roma que o presidente Mussolini recebeu em audiencia o representante do Fascio de São Paulo, que lhe fez entrega do riquíssimo album offerecido pelos italianos domiciliados no Brasil como homenagem da administração e devotamento ao Duce.
O album, coberto por milhares de assinaturas, abre com uma formosa dedicatoria em que se declara que nos corações dos italianos emigrados voluntarios no Brasil não se desvanecerà a confiança nos altos destinos da pátria, que contemplam de longe cheios de orgulho e saudade e enviam a Musolini: com a presente saudação os protestos de sua fé renovada na 4ª Italia Redenta.
Musolini mostrou-se profundamente commovido pela homenagem dos seus irmãos do ultramar, a quem enviou a dupla e fervorosa saudação do chefe do governo e do chefe fascista.


Fonte: O Brasil: órgão do Partido Republicano. Caxias do Sul, 2 fev 1924, n. 5, Ano XII.

domingo, 7 de junho de 2015

Lettre

La lettre, document de l’absence, ne nous renvoie, déformé par l’alchimie de la séparation, qu’un reflet de ce que n’est pas, de ce que l’on ne peut vivre. Elle est ce qui a été, ce qui n’est plus, mirroir de sentiments exaspérés, edulcurés, de mots d’attente conventionnels que l’on se doit dire à l’autrre pour s’apaiser soi-même quand il n’est plus là. 

Marie-Claire Grassi 

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Lettres à Louise Colet



http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d1/Louise_Colet.jpg
"J’éprouve pour toi um mélange d’amitié, d’attrait, d’estime, d’attendrissement de coeur et d’entraînement de sens qui fait um tout complexe, dont jê ne sais pas le nom mas qui me paraît solide."

FLAUBERT, Lettres à Louise Colet, Paris: Magnard, 2003, p. 21.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Cartas

"Ce qui me semble beau, ce que je voudrais faire, c'est un livre sur rien, un livre sans attache extérieure, qui se tiendrait de lui-même par la force interne de son style, comme la terre sans être soutenue se tient en l'air, un livre qui n'aurait presque pas de sujet ou du moins où le sujet serait presque invisible si cela se peut" (Flaubert, Carta a Louise Colet de 16/01/1852).

quarta-feira, 15 de abril de 2015

At 800 and aging well, the Magna Carta is still a big draw


The British Library is now showing the original manuscript of the Magna Carta, issued by King John in 1215 - more than 500 years before the US Declaration of Independence and the Bill of Rights. This exhibit, "Magna Carta: Law, Liberty, Legacy," is all part of an effort to show how the English document shaped today's world. The British Library is displaying two original copies of the Magna Carta. The text- translated into modern English from the original Latin reads: "No free man shall be arrested or imprisoned save by the lawful judgment of their equals or by the law of the land. To no one will we sell, to no one will we deny or delay right or justice. In 1215, it was revolutionary for a king to say that not even he was above the law. Of course, King John did not actually want to issue this document. He was at war with English barons; they gave him no choice. Then the king went behind their backs and secretly wrote a letter to Pope Innocent III, saying, "I have been forced to sign this awful thing! What people often don't realize is that Magna Carta itself was only valid for 10 weeks. The pope responded with a letter known as a "papal bull," which is also on display. The pope says, 'I declare the charter to be null and void of all validity forever. And yet the document became the foundation of the modern judicial system.
Fonte: Migalhas International, Abril 15, 2015 nº 1616 - Vol. 11


A Biblioteca Britânica exibe agora o manuscrito original da Carta Magna promulgada por D. João em 1215, mais de 500 anos antes da Declaração de Independência os EUA e o Bill of Rights. Ela exibe o título de "Magna Carta: Law, Liberty, Legacy", tudo é parte de um esforço para mostrar como o documento Inglês conforma o mundo de hoje. A Biblioteca Britânica está exibindo dois exemplares originais da Magna Carta. No texto-traduzido para o Inglês moderno do latim original lê-se: "Nenhum homem livre será detido ou preso, salvo pelo julgamento legal de seus pares ou pela lei da terra. A ninguém venderemos, a ninguém negaremos ou retardaremos o direito ou a justiça. Em 1215 era algo revolucionário para um rei afirmar que nem mesmo ele estava acima da lei. É claro, o Rei John realmente não desejava promulgar tal documento. Ele estava em guerra com os barões ingleses, e não teve escolha. Secretamente, porém, escreveu uma carta ao Papa Inocêncio III, dizendo: “Eu fui forçado a assinar essa coisa horrível!” ― O que muitas vezes as pessoas não percebem é que a própria Carta Magna foi válida apenas durante 10 semanas. O papa respondeu com uma carta conhecida como a "bula papal", que também está em exibição.  Diz o Papa: "Eu declaro a Carta deve ser nula e sem efeito de toda validade para sempre”. ― O documento, mesmo assim, tornou-se a base do sistema judicial moderno.

domingo, 5 de abril de 2015

Falar, escrever, ler...

Bilhetes que integram o arquivo de Lysia. 

Speaking, writing, reading, and recordkeeping are all part of the most fundamental human activities. This has been the case for a few thousand years, and it continues to be the case even in the digital era, where the characteristics of the activities are changing rapidly (COX, J. Richard. Personal archives and a new achival calling: Redings, reflections and ruminations. Duluth, Minnesota: Litwin Books, LLC, 2008, p. X).

quinta-feira, 5 de março de 2015

Minha Querida Lysia

Publicação 2015
Trecho de uma das cartas de Maria. 
Minha Querida Lysia

TOMASINI, Maristela Bleggi. Minha Querida Lysia. In: FREITAS, Talitta Tatiane Martins. (Org.). Anais do VII Simpósio Nacional de História Cultural: Escrita, circulação, leituras e recepções, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. ISBN: 978-85-67476-12-4

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Publicidade

"Mas não é um favor, objetam nossos filósofos, evocar as forças profundas (fosse para reintegrá-las no sistema tão pobre de garantias)? “Libertem-se da censura! Frustrem seus superegos! Tenham a coragem de seus desejos!” Logo, solicitem-se verdadeiramente essas forças profundas para permitir-lhes que se articulem em uma linguagem? Esse sistema de significações permite levar a um sentido, e a qual sentido, zonas até aqui ocultas da pessoa? Ouçamos agora Martineau: “É naturalmente preferível utilizar termos aceitáveis, estereotipados: é a própria essência da metáfora (!)... Se eu peço um cigarro ‘suave’ ou um ‘belo’ carro, ― ainda que incapaz de definir literalmente tais atributos ―, sei que eles indicam alguma coisa de desejável. O motorista mediano não sabe o que é o octano em sua gasolina, mas ele sabe vagamente que é alguma coisa favorável. Assim, pede gasolina com alto índice de octanagem, porque é esta qualidade favorável e essencial que ele reclama em um jargão ininteligível” (p. 142). Em outras palavras, o discurso publicitário não faz senão suscitar o desejo para generalizá-lo nos termos mais vagos. As “forças profundas”, reduzidas a sua mais simples expressão, são indexadas sobre um código institucional de conotações e de “escolhas” não podem, no fundo, senão chancelar o conluio entre esta ordem moral e minhas veleidades profundas: tal é a alquimia da “garantia psicológica”[1].
Essa evocação estereotipada das “forças profundas” equivale muito simplesmente a uma censura. Essa ideologia da realização pessoal, o ilogismo triunfante das pulsões desculpabilizadas, é, de fato, um gigantesco empreendimento de materialização do superego. Aquilo que é “personalizado” no objeto é, primeiro, uma censura. Os filósofos do consumo costumam falar de “forças profundas” como de possibilidades imediatas de felicidade que é o bastante liberar. Todo inconsciente é conflitante e, na medida em que a publicidade o mobiliza, ela o mobiliza como conflito. Ela não libera as pulsões, ela, antes, mobiliza os fantasmas que bloqueiam essas pulsões. Daí a ambiguidade do objeto, daí a pessoa jamais se superar, podendo apenas recolher-se contraditoriamente: nos desejos e nas forças que o censuram. Encontramos aí um esquema global de gratificação/frustração analisada mais acima: o objeto veicula sempre, sob uma resolução formal de tensões, sob uma regressão nunca exitosa, a recondução perpétua dos conflitos. Estaria aí talvez uma definição da forma específica da alienação contemporânea: os próprios conflitos interiores, as “forças profundas” são mobilizadas como o é a força de trabalho nos processos de produção.
Nada mudou, ou antes, se : as restrições à realização pessoal não se exercem mais através de leis repressivas, de normas de obediência : a censura se exerce através das condutas “livres” (compra, escolha, consumo), através de um investimento espontâneo, ela se interioriza de qualquer sorte no próprio gozo."

BAUDRILLARD, Jean. Le sistème des objets. Paris: Gallimard, 1968, p. 269-270.




[1] De fato, é fazer muita honra à publicidade compará-la a uma magia: o léxico nominalista dos alquimistas tem, ele, algo de uma verdadeira linguagem, estruturada por uma práxis de procura e de decifração. O nominalismo da “marca”, ele, é puramente imanente e fixado pelo imperativo econômico.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A Cidade



'Mas a «cidade de cultura» em breve se expande. Desdobra-se em arrabaldes que, pouco a pouco, vão absorvendo os meios rurais circundantes. A relação com a natureza deixa de ser dialéctica para passar a ser esterilizante. O mundo rural é esvaziado, sem que tenha tempo de se renovar. Paralelamente, a gestão da cidade torna-se cada vez mais pesada e burocrática. Formas geométricas e cristalizadas substituem-se às formas orgânicas. O anonimato é a regra, encontrando-se o indivíduo desprovido de meios para se situar, de forma perdurável, em relação ao seu próprio meio. É assim que surge a «cidade mundial», submetida, segundo as épocas, ao poder dos tecnocratas ou dos funcionários imperiais. A sua aparição, diz-nos Spengler, corresponde ao estádio da «petrificação» das culturas. «Estas cidades gigantescas e pouco numerosas», escreve, «banem e matam, em todas as civilizaçãos, sob o conceito de província, e por inteiro, a paisagem que foi a mãe da sua cultura (...). Elas transformam-se na história petrificada de um organismo».' 

BENOIST, Alain de. A Cidade in "Nova Direita Nova Cultura – Antologia crítica das ideias contemporâneas", Lisboa, Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, 1981. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Etiqueta


"E não confundamos educação com etiqueta, pois a etiqueta pode não ser originada por esse perfeito sentimento, como impulso instantâneo, mas imposta por conveniências mercantis. A etiqueta, nestes casos, é o instrumento do disfarce, a dissimulação aplicada, e a arma da hipocrisia".

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A PANÓPTICA


As sociedades ocidentais da atualidade dispõem de meios de vigilância e de controle com os quais os antigos regimes totalitários teriam apenas sonhado. E atualmente eles são empregados cada dia um pouco mais. A essa vigilância soma-se o “politicamente correto”, que procura normatizar a opinião pelo emprego de palavras impostas a todos, ao estilo do “pensamento único”. Substitui-se o debate pelo sermão, de um higienismo invasivo, que visa modelar comportamentos em nome do bem, conformando preferências e dileções. Isso vai diretamente de encontro à liberdade de expressão, à propaganda, enfim, que se denomina hoje publicidade.

A segurança tornou-se, nos últimos anos, uma preocupação política essencial. Satisfazer a esta preocupação sem atingir as liberdades é um problema que não vem de ontem. No seio das “sociedade do risco”, a insegurança real ou presumida engendra um clima de incerteza e de medo apropriado a fazer nascer todos os fantasmas. O aparelho securitário faz uso desse clima para colocar a sociedade sob controle. Os totalitarismos clássicos desaparecem. São assim outras lógicas, mais sutis, de servidão e de dominação que aparecem. Elas tomam a forma de uma engrenagem complexa de proibições e de regulamentações que se legitimam pelas ameaças onipresentes. Os pretextos são sempre excelentes: trata-se de lutar contra a delinquência, de vigiar nossa saúde, de aumentar a segurança, de melhor controlar a imigração ilegal, de proteger a juventude, de lutar contra a “cybercriminalidade”, etc. A experiência mostra, porém, que as medidas adotadas no início apenas em relação a um pequeno número são a seguir sempre estendidas ao conjunto dos cidadãos. Uma vez o princípio admitido, resta apenas generalizá-lo.

“Desde alguns anos, tentam ― escreve o filósofo Giorgio Agambem ―, nos convencer a aceitar como dimensões humanas e normais de nossa existência práticas de controle que sempre foram consideradas como excepcionais e propriamente desumanas”. O problema é que, para se assegurarem de sua segurança, os homens têm, em todos os tempos, se mostrado prontos a abandonar suas liberdades. A “luta contra o terrorismo” é, desse ponto de vista, exemplar. Ela permite instaurar, em escala planetária, um estado de exceção permanente. Nos Estados Unidos, os atentados de setembro de 2001 tiveram como consequência direta enormes restrições das liberdades públicas. Esse modelo está a caminho de se generalizar. Do fato de sua onipresença virtual, o terrorismo provoca medos eminentemente rentáveis e exploráveis. Contra o inimigo invisível, a mobilização só pode ser total, pois em tais circunstâncias todos são infalivelmente suspeitos. A luta contra o terrorismo permite aos poderes públicos que se imponham frente à sua própria sociedade civil, tanto quanto frente aos seus inimigos designados. Além dessa realidade imediata, o terrorismo pode assim se definir como fenômeno gerador de um terror convertível em capital político, que aproveita menos aos seus autores do que àqueles que dele se servem como repositório, para condicionar e amordaçar seus próprios cidadãos.

Hostis a toda opacidade social, as democracias liberais se dão um ideal de “transparência” que só pode se realizar pelo esquadrinhamento social.  A sociedade transforma-se então em um bunker protegido por distintivos, códigos de acesso, câmeras de vigilância. A multiplicação de espaços privativos, sempre com a finalidade de segurança, subtrai tais espaços ao fluxo social e termina por fazer desaparecer a própria noção de espaço comum, que é aquela da cidadania. Assim se dá lugar a uma Panóptica, de outro modo mais temível do que aquela prevista por Jeremy Bentham, mas cuja função é a mesma: tudo ver, tudo entender, tudo controlar. No interior de uma sociedade de assistência generalizada, ― na qual os problemas sociais dependem apenas da “célula de assistência psicológica” e onde a obsessão ingênua do “diálogo” dá a entender que, pela discussão, tudo é negociável e pode encontrar uma solução ―, a conformidade ou “monocromia” (Xavier Raufer) se faz do mesmo jeito que se opera, em informática, a formatação de um disco rígido, de maneira que aceite apenas uma única categoria de softwares ou de programas. Compreende-se melhor, a partir daí, que a ideologia dominante fale mais naturalmente de direitos que de liberdades, pois a instauração de um novo direito se complementa, inevitavelmente, de um controle ilimitado de sua aplicação.

A figura que a sociedade de mercado procura promover é aquela do eterno adolescente refém de uma permanente adição ao consumo: a mercadoria como droga. Economia compulsiva, onde a energia é convertida em pura agitação, em simples capacidade de se distrair. Essa distração, no sentido pascaliano da palavra, aproxima-se de uma diversão. Ela desvia do essencial e contribui assim para um desapossamento de si. Provocar medo de um lado, divertir de outro, ou seja, desviar-se do essencial, impedir que se possa refletir, dar prova de espírito crítico. Tudo fazer para que as pessoas produzam e consumam, sem se interrogar sobre algo além de suas preocupações e desejos imediatos, sem jamais se engajarem em um projeto coletivo que as possa tornar mais autônomas. A sociedade assim docilizada se torna essa “tropa de animais tímidos e industriosos” dos quais falava Tocqueville. Eis o ideal da criação de aves em confinamento.

O fato mais marcante é a correlação que se observa entre a perda de autoridade e a obsolescência política do Estado-nação e o reforço de seu aparelho repressivo. Então, mesmo quando se distancia cada vez mais do domínio econômico e social, o Estado legifera e controla mais e mais seus cidadãos. A vantagem para ele é que, em matéria de segurança, não tem obrigação de resultado. Melhor ainda: seu interesse é de não obtê-lo, porque assim pode justificar a perenização de suas políticas de controle e de segurança. “Não se reelege um governo promotor da segurança total porque ele teria conseguido reduzir a insegurança. Ele é reeleito porque a insegurança persiste” (Percy Kemp). O verdadeiro objetivo não é, pois, tanto o de suprimir a insegurança, que é dádiva para aqueles que dela se aproveitam, mas o de mantê-la, de modo a tornar possível a manutenção de uma vigilância cada vez mais generalizada.

Trata-se, afinal e contas, de criar um caos latente que, sem ultrapassar certo patamar, seja suficiente para inibir qualquer tentativa de reação coletiva. A mesma tática foi observada no passado contra as “classes perigosas”, com o objetivo inconfessável de eliminar os desviantes, os portadores de uma palavra discordante. Hoje, são os próprios povos que, aos olhos da Forma-Capital e das oligarquias reinantes são globalmente transformadas em “classe perigosa”. É aos povos que é preciso domesticar. Para impedi-los de elaborar projetos coletivos de emancipação e de autonomia, é bastante inspirar-lhes medo. É para isso que serve a Panóptica. “Quando não existe o martírio físico, dizia Péguy, são as almas que não conseguem mais respirar”.

Robert de Herte, L'Panoptique. Éléments n°117, 2005, disponível em http://grece-fr.com/?p=3788



Bilhete


sábado, 17 de janeiro de 2015

Fernando Pessoa

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no «Livro do Desassossego». Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

Fernando Pessoa, in 'Carta a Mário de Sá-Carneiro (1915) '

Fonte: Citador

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sensibilidades

“Dicotomias eloquentes: o corpo físico é um mundo cego, um receptáculo, enquanto os territórios íntimos da alma são a presa da emoção, do movimento” 

 LOTTERIE, Florence. Littérature et sensibilité. Paris: Ellipses, 1998, p 15.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Sobre o amor


Cartão de felicitações de Francisco para Maria. Documento de 03 de novembro de 1924.
Por menos acadêmico que seja, fato é que o amor ― esse amor apaixonado que rege os enamoramentos ― determina um sem número de produções do espírito humano. É constante nas artes, na prosa e na poesia. Exclusivista, particulariza-se pela unicidade de seu objeto. Nem espíritos religiosos ousaram ignorar a importância desse sentimento que se impõe com tanta força, em especial na sensação da imprescindibilidade da presença do outro, como Vieira,  inclusive, em seu Sermão do Mandato de 1643, soube reconhecer:

Assim como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito; assim no mesmo coração não podem caber dois amores, porque o amor que não é intenso, não é amor. Ora grande coisa deve ser o amor, pois sendo assim, que não bastam a encher o coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores (VIEIRA, 1939, p. 237).


VIEIRA, Antônio. Sermões e Lugares Selectos. Bosquejos histórico-literários, selecção, notas e índices remissivos, por Mário Gonçalves Viana. Porto: Ed. Educação Nacional, 1939.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Informação

Seguramente, um envelope que passou pelos correios nos fornece um indício seguro de sua origem. Torna-se verossímil, confiável e - por que não? - histórico.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Percursos Devocionais


Será possível desvendar os caminhos concretos fixados no mundo sensível por obra da fé, que ora apazígua, ora atormenta as almas?  Haveria um método que, bem empregado, nos propiciasse um retrato de como a devoção participa ativamente na formação de grupos sociais, de como ela aproxima pessoas, de como se torna um fator de socialização, fomentando a construção de templos que, uma vez erigidos, dão lugar a uma rotina de cultos a que se somam escolas e comércio de bens e serviços? Como fazer para descobrir esses caminhos, quem os percorre e por que e como o faz. Qual o significado de tantas capelas muitas vezes escondidas, não raro abandonadas, quase esquecidas ao longo de estradas e ruas de tantas pequenas cidades? E o que elas nos contam sobre essa arte que é sacra, que uma estética simplória, sofrida e torturada construiu, e cujos vestígios podemos documentar?

São Paulo