terça-feira, 24 de novembro de 2020

Recorte de Pesquisa

Uma palavra sobre o batismo

 Em que pese reivindicado por Ferri, o batismo da expressão psicologia coletiva comporta outras referências anteriores a 1884. Pode-se encontrar menção a ela em obra publicada em 1845, fora, todavia, do contexto das multidões e da criminologia, contexto em que Ferri, em tese, aparece como percussor de seu emprego.

Foi Littré (1845) em sua obra intitulada Analyse raisonnée du cours de philosophie positive de M. Auguste Comte quem abordou o assunto, bem antes de Ferri, portanto. Émile Littré, reconhecido dicionarista francês, segundo Petit (2016, passim), já era um autor conhecido quando leu o Cours de philosophie positive de Comte, que aparece em 1839, inaugurando a sociologia. Entusiasmado a princípio, Littré se afastou depois dessa doutrina, de sorte que, em 1852, deixa a sociedade positivista que havia ajudado a fundar quatro anos antes. Todavia, enquanto entusiasta, publicou a pequena obra acima referida, de apenas sessenta e duas páginas. Nela, a expressão psicologia coletiva aparece em contexto ligado à concepção comtiana da sociologia, que Comte via como totalizante, como algo essencial à compreensão da causa e do objetivo de todas as ciências preliminares, — as demais —, comparáveis a “afluentes sucessivos na grande corrente da história” (id., p. 46). Comte pretendia chegar a uma concepção geral de todos os fenômenos, tanto na ordem objetiva como subjetiva, tanto na ordem cósmica como social, ou seja: uma filosofia positiva, com razões plausíveis. Tais razões, contudo, nem a filosofia teológica nem a filosofia metafísica poderiam fornecer. Estas últimas — “aos olhos da filosofia positiva” (id., ibid.) —, teriam “sua origem nas condições essenciais da psicologia coletiva e da evolução histórica” (id., p. 46-47). Elas conduziriam ao erro, porque resultariam de uma perversão do espírito, sem descartar, contudo, resultassem elas — quem sabe? —, de “uma permissão da Providência, cujo julgamento é impenetrável” (id., p. 47). Enfim, o contexto aponta para uma psicologia coletiva que aí aparece apenas como condicionante que bem poderia resultar da própria negação que Comte fez psicologia como tal, que considerava inútil, como afirmou claramente em pelo menos duas ocasiões no segundo volume de seu Cours de philosophie positive.

Comte (1894, p. 652-653) encontrava “uma profunda inanidade necessariamente inerente à psicologia moderna". Isso se deveria, não só a uma “absurda alucinação que caracteriza necessariamente seu modo especial de exploração interior” como ao fato de ela se propor a realizar, “em relação aos mais complexos fenômenos, esse grau inoportuno de análise elementar que se está disposto a eliminar dos mais simples estudos, sem que tenha conseguido apenas conduzir essa inútil investigação até o nível das noções inspiradas de todos os tempos, nesse sentido, pela experiência vulgar” (id., p. 652-653). Mais adiante, não deixa de registrar que a psicologia moderna já deveria ter sido “radicalmente condenada”, assim como ele já teria demonstrado, “seja por sua viciosa instituição do sujeito, seja pelo evidente absurdo de seu principal modo de exploração”, modo este que estaria destinado a fazer uso com um gênero de análise elementar, relativamente aos fenômenos mais complexos, “cujo equivalente foi sabiamente descartado dos estudos mais simples como quimérico e perturbador” (id., p. 691).

Mais tarde encontraremos ainda outra menção à psicologia coletiva, com Nefftzer (1859) que, a propósito de um exame acerca da construção da história, — a morte de Toqueville ocorrera pouco antes — formula uma crítica dirigida justamente à obra de Littré a que nos referimos. Faz isso em sua Chronique parisienne, publicada na Revue Germanique que ele mesmo fundou. Segundo a crônica, Toqueville teria sabido entender a complexidade da história. O patriotismo e os sentimentos pessoais tenderiam a certo exagero, que uma filosofia da história deveria moderar, evitando, pela imparcialidade, cair naquilo que ele chama de um otimismo vulgar (id., p. 233). A palavra progresso, por sua vez, também assumiria sentidos universais, projetando-se em doutrinas, que subjugariam o pensamento. A propósito destas, menciona Littré, que escrevera um opúsculo, obra da qual Nefftzer omite o título, mas que, pelas citações literais que faz, não pode ser outra senão a acima citada, a respeito de Comte. A doutrina positiva seria uma dessas que subjugariam o pensamento, por levar longe demais as especulações humanas.

Eis, assim, o contexto em que a expressão psicologia coletiva aparece anteriormente a Ferri e ao emprego que fez em sua obra sobre Processo Penal. Sem dúvida, a expressão já existia, todavia, — ao menos ao longo do que se pôde apurar até agora na pesquisa — ainda não relacionada ao contexto das multidões que é justamente aquele que nos interessa aqui.  Dessa sorte, Ferri bem poderia permanecer, — como ele mesmo insiste — como o responsável por esse batismo.


Comte, A. (1894). Cours de philosophie positive, 5ed, T. 2. Paris: Au siège de la Société Positiviste.

Littré, E. (1845). Analyse raisonnée du cours de philosophie positive de M. Auguste Comte. Utretch: Kemink & Zoon.


Nefftzer, A. (1859). Chronique parisienne. Revue Germanique, t. VI. Paris: Bureau de la Revue Germanique, pp. 232-285.

Petit, A. (2016). Comte revu et corrigé : le cas LittréRevue européenne des sciences sociales, 54-2(2), 69-88. Recuperado de https://www.cairn.info/revue-europeenne-des-sciences-sociales-2016-2-page-69.htm em 23 de junho de 2019.


domingo, 15 de novembro de 2020

O Homem e a morte

 

 "Hoje, as filosofias revolucionárias colocam a morte entre parênteses e as filosofias reacionárias estão sob o signo da morte(1). A morte é o palco eterno, o campo de batalha cuja posse confere poder sobre as almas. Quem tem a morte tem o domínio!"

(1) O que obviamente não significa que todas as filosofias que colocam a morte entre parênteses são revolucionários nem que toda pessoa obcecada pela morte seja reacionária.

MORIN, Edgar. L’UOMO E LA MORTE. Trad. de Riccardo Mazzeo .Trento: Edizioni Centro Studi,  2014, p. 248.


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Fontes


Quando se escreve um livro, artigo, texto que seja, enfim, consultam-se fontes. Muitas vezes, essas fontes são contemporâneas aos fatos dos quais se trata, e, neste caso, dizemos que elas são fontes primárias. Jornais, fotografias, livros, enfim, tudo que é contemporâneo aos fatos estudados pode ser considerado como fonte primária de pesquisa. Este vídeo foi feito com base em documentos que serviram de fonte ao Livro dos Cem Anos do Laboratório de Psicologia Experimental da Escola Normal Secundária de São Paulo.

Sei bem que nem todo mundo entende o sentido de alguém se dar ao trabalho de fazer um vídeo como este. São simples "fontes" de pesquisa. Notícias de jornais e livros de um quando que não é mais o nosso, um quando do outro que, além de ser outro que não nós, é outro em um tempo ao qual não se pertence. Um abismo nos separa do outro na história, e falo da História mesmo. Transpor esse abismo é lançar-se em uma aventura, percorrer páginas e páginas em busca de pistas, acontecimentos, fatos, indícios de algo. Cada pedacinho desse material valioso será depois transformado em informação. É matéria prima que representa fragmentos do passado. Pesquisar é viajar no tempo. Uma viagem que exige muito mais do que deslocar-se no espaço: não se vai ao passado, porque o passado é irrecuperável. Ele não têm existência, mas versões. Pesquisar o passado, buscar o outro em outro tempo, requer um exercício de sensibilidade, uma adequação a sociabilidades que nos são estranhas. É um trabalho muitas vezes solitário. E poucos são os que entendem o fascínio de uma pesquisa, o gosto da descoberta, por vezes, de uma informação mínima. 

Pesquisar é afrontar o Todo Poderoso deus que é o Tempo. É buscar, apesar dele, ver, ouvir, perceber o outro que nos acena do passado. Tenho para mim que, independente do produto obtido em uma pesquisa, independente de seu resultado prático, a exploração das fontes, especialmente quando elas são primárias, já é, em si mesmo, um produto: um arquivo que não raramente o pesquisador guarda em separado com as sucessivas versões daquilo que fez.  

Talvez por isso mesmo eu ame tanto pesquisar e arquivar. Colecionar informações para descobrir por quais misteriosas articulações elas nos sugerem sentidos.Como se houvesse uma linguagem inerente às coisas, uma poderosa linguagem que nos descobre padrões mesmo nas menores particularidades. Um trabalho tão rico que nos torna tanto melhores quanto mais velhos ficamos, por termos percorrido décadas e nos habituado a mudanças. 


Centofanti, um outsider na historiografia da Psicologia (05.10.1948 – 12.08.2020)


Sobre Rogério, artigo de Ana Maria Jacó-Vilela, professora associada da 
Universidade do Rio de Janeiro, sobre Rogério: Centofanti, um outsider na historiografia da Psicologia (05.10.1948 – 12.08.2020) 

Jacó-Vilela, A. M. (2020). Centofanti, um outsider na historiografia da Psicologia : (05.10.1948 – 12.08.2020) . Memorandum: Memória E História Em Psicologia37. Recuperado de https://periodicos.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/25711