Uma palavra sobre o batismo
Foi Littré (1845) em sua obra intitulada Analyse
raisonnée du cours de philosophie positive de M. Auguste Comte quem abordou o assunto, bem antes de Ferri,
portanto. Émile Littré, reconhecido dicionarista francês, segundo Petit (2016, passim), já era um autor conhecido quando
leu o Cours de philosophie positive de Comte, que aparece em 1839,
inaugurando a sociologia. Entusiasmado a princípio, Littré se afastou depois
dessa doutrina, de sorte que, em 1852, deixa a sociedade positivista que havia
ajudado a fundar quatro anos antes. Todavia, enquanto entusiasta, publicou a
pequena obra acima referida, de apenas sessenta e duas páginas. Nela, a
expressão psicologia coletiva aparece em contexto ligado à concepção comtiana
da sociologia, que Comte via como totalizante, como algo essencial à
compreensão da causa e do objetivo de todas as ciências preliminares, — as
demais —, comparáveis a “afluentes sucessivos na grande corrente da história”
(id., p. 46). Comte pretendia chegar a uma concepção geral de todos os
fenômenos, tanto na ordem objetiva como subjetiva, tanto na ordem cósmica como
social, ou seja: uma filosofia positiva, com razões plausíveis. Tais razões,
contudo, nem a filosofia teológica nem a filosofia metafísica poderiam
fornecer. Estas últimas — “aos olhos da filosofia positiva” (id., ibid.) —,
teriam “sua origem nas condições essenciais da psicologia coletiva e da
evolução histórica” (id., p. 46-47). Elas conduziriam ao erro, porque
resultariam de uma perversão do espírito, sem descartar, contudo, resultassem
elas — quem sabe? —, de “uma permissão da Providência, cujo julgamento é
impenetrável” (id., p. 47). Enfim, o contexto aponta para uma psicologia coletiva
que aí aparece apenas como condicionante que bem poderia resultar da própria
negação que Comte fez psicologia como tal, que considerava inútil, como afirmou
claramente em pelo menos duas ocasiões no segundo volume de seu Cours de philosophie positive.
Comte (1894, p.
652-653) encontrava “uma profunda inanidade necessariamente inerente à
psicologia moderna". Isso se deveria, não só a uma “absurda alucinação que
caracteriza necessariamente seu modo especial de exploração interior” como ao
fato de ela se propor a realizar, “em relação aos mais complexos fenômenos,
esse grau inoportuno de análise elementar que se está disposto a eliminar dos
mais simples estudos, sem que tenha conseguido apenas conduzir essa inútil
investigação até o nível das noções inspiradas de todos os tempos, nesse
sentido, pela experiência vulgar” (id., p. 652-653). Mais adiante, não deixa de
registrar que a psicologia moderna já deveria ter sido “radicalmente
condenada”, assim como ele já teria demonstrado, “seja por sua viciosa instituição
do sujeito, seja pelo evidente absurdo de seu principal modo de exploração”,
modo este que estaria destinado a fazer uso com um gênero de análise elementar,
relativamente aos fenômenos mais complexos, “cujo equivalente foi sabiamente
descartado dos estudos mais simples como quimérico e perturbador” (id., p.
691).
Mais
tarde encontraremos ainda outra menção à psicologia coletiva, com Nefftzer
(1859) que, a propósito de um exame acerca da construção da história, — a morte
de Toqueville ocorrera pouco antes — formula uma crítica dirigida justamente à
obra de Littré a que nos referimos. Faz isso em sua Chronique parisienne, publicada na Revue Germanique que ele mesmo fundou. Segundo a crônica,
Toqueville teria sabido entender a complexidade da história. O patriotismo e os
sentimentos pessoais tenderiam a certo exagero, que uma filosofia da história
deveria moderar, evitando, pela imparcialidade, cair naquilo que ele chama de
um otimismo vulgar (id., p. 233). A palavra progresso, por sua vez, também
assumiria sentidos universais, projetando-se em doutrinas, que subjugariam o
pensamento. A propósito destas, menciona Littré, que escrevera um opúsculo,
obra da qual Nefftzer omite o título, mas que, pelas citações literais que faz,
não pode ser outra senão a acima citada, a respeito de Comte. A doutrina
positiva seria uma dessas que subjugariam o pensamento, por levar longe demais
as especulações humanas.
Eis, assim, o
contexto em que a expressão psicologia coletiva aparece anteriormente a Ferri e
ao emprego que fez em sua obra sobre Processo Penal. Sem dúvida, a expressão já
existia, todavia, — ao menos ao longo do que se pôde apurar até agora na
pesquisa — ainda não relacionada ao contexto das multidões que é justamente
aquele que nos interessa aqui. Dessa
sorte, Ferri bem poderia permanecer, — como ele mesmo insiste — como o
responsável por esse batismo.
Comte, A. (1894). Cours de philosophie positive, 5ed, T. 2. Paris: Au siège de la Société Positiviste.
Littré, E. (1845). Analyse raisonnée du cours de philosophie
positive de M. Auguste Comte. Utretch: Kemink & Zoon.
Nefftzer, A. (1859).
Chronique parisienne. Revue Germanique,
t. VI. Paris: Bureau de la Revue Germanique, pp. 232-285.
Petit, A. (2016). Comte revu et
corrigé : le cas Littré. Revue européenne des sciences
sociales, 54-2(2), 69-88. Recuperado de https://www.cairn.info/revue-europeenne-des-sciences-sociales-2016-2-page-69.htm em 23 de junho de 2019.
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