segunda-feira, 10 de julho de 2023

A propósito

 


Baudrillard tem toda razão quando diz que nossa realidade histórica passa pelo crivo da mídia, inclusive os acontecimentos trágicos do passado. E é tarde demaias para compreendê-los "historicamente". Nossa consciência moral e coletiva também são efeitos midiáticos. Mesmo acontecimentos e ideias são substituíveis, assim como a história, porque tudo pode, simplemente, não ter existido.

Jean Baudrillard (1929-2007)

 

Embora filha do século XX, nascida depois da II Guerra, nunca deixei de ter certo ar não diria conservador, mas meio Belle Époque, naquilo que o século XIX tinha de irreverente e de vanguardista. Contudo, vivi e tenho vivido demais e, ao alcançar o século XXI, fui desafiada a interpretar estes nossos tempos pós-modernos, pensando esse presente que se consuma e se consome em breves instantes. Em meio a esse desafio, batalha cotidiana que me acelera o coração e a mente, encontrei um homem que me trouxe, mais que palavras, um verdadeiro turbilhão de ideias.

Apaixonei-me por Baudrillard quando estudava o destino dos descartes: coisas das quais nos desfazemos, porque sua utilidade se perdeu. Especular sobre o tema levou-me à leitura de Le Système des objets. Parei tudo o que vinha pesquisando. Revisei e revivi conceitos. Mudei meu olhar sobre o mundo. O livro é uma das primeiras obras de Baudrillard, publicada em 1968. Foi sua tese de doutorado em Sociologia, defendida em 1966 na Universidade de Paris X, Nanterre. Só a banca já causa arrepios a quem quer que já tenha respirado a atmosfera acadêmica: Henri Lefebvre, Roland Barthes e Pierre Bourdieu.

“O Sistema dos Objetos” me fez entender a relação entre cultura e consumo e, mais ainda, me deu condições de aferir até que ponto essa relação não poderia comprometer minha própria identidade. Porque os objetos não são coisas inertes, mas ingredientes que atuam ativamente na construção da vida social, expressando ideias e valores. Os espelhos, por exemplo, se relacionam ao espaço assim como os relógios, símbolos da permanência, se relacionam ao tempo. São equivalentes, nesse sentido, atuantes. Quanto mais espelhos, — diz ele —, mais gloriosa é a intimidade, mas também mais circunscrita a si mesma.

Baudrillard requer que o leitor vá além da leitura. Percorro seus textos e, pelo caminho, ele vai me inoculando suas experiências. Em certos momentos, sinto o terrível tédio que o mundo lhe causa; em outros, me entusiasmo ao perceber como ele abstrai de qualquer coisa as mais brilhantes ideias. É minha imaginação que ele consegue provocar literalmente em over doses seguidas. Para mim, descobri-lo foi uma experiência visceral, tão próxima da arte quanto deve estar um filósofo. Logo ele, que disse que jamais pretendeu a verdade, porque a respeitava demais para colocá-la em perigo. Nada daquele clássico distanciamento do objeto, nada de textos impessoais.

Desde então, adotei Baudrillard como quem adota um santo. Só que, em lugar de comprar uma imagem e orar diante dela para obter um milagre ou uma graça, é diante de seus livros que me deixo encantar, seduzir e apaixonar. Se não encontro ali a graça ou o milagre de uma intervenção divina, é no tênue reflexo de sua humanidade já extinta que encontro as fórmulas que me ajudam a compreender esse tempo presente que, afinal, eu ainda tenho de viver, não sem algum esforço, é verdade. Refém dessa hiper-realidade midiática, acredito que outros, assim como eu, sintam às vezes necessidade de certo isolamento, em busca de um refúgio capaz de nos devolver a simples realidade, diante de tantos desejos novos a saciar, de tantas necessidades novas a suprir, de tantas coisas novas a experimentar. Em um extremo, avatares imbecilizantes e seus milhões de seguidores ditando comportamentos e caminhos rumo ao sucesso; de outro, zumbis que funcionam no modo automático, incapazes de uma reflexão, incapazes de abrigar uma só ideia própria que seja; no meio, a massa, irredutível, disputada aos nacos para integrar as mais diversas facções: moda, política, cultura, tudo é produto, tudo é consumo.

A obra de Baudrillard é notável e inclui “Simulacros e Simulação”, livro que inspirou o filme Matrix, que muitos acharam sensacional. Mas é “A Transparência do Mal: Ensaios sobre Fenômenos Extremos” (La transparence du mal: Essai sur les phénomènes extrêmes,1990) a obra que mais me impressiona atualmente. Entre outros temas polêmicos, Baudrillard observa que não somos mais capazes de crer, de amar, de querer, porque cremos no que o outro crê, amamos o que o outro ama e queremos o que o outro quer. Trata-se de uma derrogação geral da vontade, que eleva o querer, o poder e o saber a uma segunda instância.

E por que o mal? Porque o mal, na sociedade contemporânea, se faz cada vez mais visível e transparente, em vez de oculto e velado como costumava ser. Essa transparência tem como causa a tecnologia midiática, que faz com que tudo possa parecer banal e gratuito. Portanto, não se pode estranhar que o terrorismo, a violência urbana, a guerra e as políticas que promovem sua emergência tenham se tornado um fenômeno global. Como resistir a tamanho poder e força, quando sequer há um bem que costumava se opor ao mal? A que formas de subversão e resistência se poderia recorrer quando nossa pertinência a esse presente contínuo reafirma nossa condição de reféns de uma cultura de massa que não podemos afrontar a não ser pela via de uma contracultura também de massa que se deixa absorver pelo próprio monstro que julga combater?

Jogo de palavras? Excesso de abstração? Sim. Eis aí aspectos que podem ser criticados na obra de Baudrillard. Ele não leva em consideração os diferentes grupos culturais. Isso até pode ser verdadeiro, mas o que se sente mais fortemente nesse nosso tempo é que a cultura hoje é a do consumo, não obstante os diferentes produtos consumidos. Mudam as premissas, mas a lógica permanece a mesma, seja em relação aos mandarins dominantes, seja em relação aos culturalmente periféricos. Estes últimos se inserem marginalmente e por aí criam suas próprias inserções, que também são produtos culturais, tanto quanto os pertinentes à esfera tida como alta ou elevada. Por variados que sejam os grupos, eles se igualam pelas diferenças e se assimilam pelo consumo.

Pessimismo? Sem dúvida. Porque as possibilidades de mudança e resistência que existem já se encontram inseridas nas estruturas de poder dominantes. Essa resistência passiva nasce de uma consciência de ter consciência, e chega bem perto da mística de um encantamento. Afastar-se da passividade conformista requer modos criativos de ser. O diagnóstico de nosso tempo não é animador, porque para sobreviver ao mal é necessário deixar-se contagiar por ele. Lógica vacinal que beira à crítica da desconstrução, que lida com os problemas liquidando as soluções, que apela às metáforas e às analogias, porque é só na ordem da abstração que essas estruturas se tornam visíveis.

Resulta disso a diluição de tudo quanto foi um dia tradicional ou clássico, com a criação de uma monstruosa realidade simulada, que se sobrepõe à realidade física, buscando a emergência contínua de uma sociedade que se caracteriza unicamente pelo que consome, e cujos desejos são norteados pelo mercado e pela publicidade, pela mídia e pelo poder. Gente que não pensa, e que se assimila, a si própria, a um mero produto de mercado.

Eis as imensas riquezas deste mundo que, paradoxalmente, nos empobrecem tanto. Resisto graças aos meus livros, meus amores. Penso que é na subversão de nossa ínfima individualidade que se reinventa o cotidiano, na absoluta minoria da primeira pessoa do singular, ainda que minimamente, e ainda que escrevendo apenas para você, que não precisa de avatar e que, com toda certeza, não é nenhum zumbi.  

 

REVISTA VIDA BRASIL

domingo, 14 de maio de 2023

As Cartas Não Mente Jamais

Quem nunca, hein? Brincar com cartomancia pode ser muito divertido. Inesquecíveis são as lembranças que tenho de minha mãe mexendo naquelas lindas figuras coloridas. Ainda criança, ela me ensinou a ler as cartas. Na verdade, brincava disso: dizia sempre que era muito fácil descobrir todos os segredos das amigas ao colocar as cartas para elas.

Ah, preciso dizer que minha mãe foi uma mulher marcante. Elegante e vaidosa à primeira vista, ela sabia ser muito sutil e refinada. Soube provocar minha curiosidade com aquela história de descobrir segredos. Como assim? Os segredos estão nas cartas? Nas combinações? Ela sorria e sugeria que eu precisava estudar mais as tais combinações na tiragem. Mas fato é que ela acertava sempre, e as amigas, muitas vezes, vinham visitá-la apenas para, com algum jeito, pedirem para ler as cartas. Às vezes minha mãe cedia e, invariavelmente, as amigas iam embora muito impressionadas, não menos que eu, sempre à espera de que ela me revelasse o seu segredo.

Com o tempo, aqueles códigos passaram a fazer algum sentido, e, aos poucos, de certo modo, as cartas começaram a falar. Descobri também que havia outros baralhos diferentes do baralho cigano de Madame Lenormand, que existiu de fato. Era esse que minha mãe usava, o mais comum e conhecido de todos. Ela nunca se interessou pelo famoso Tarô, baralho divinatório, que serve também para alicerçar concepções esotéricas do Mundo e da Vida.  Posso dizer que até aprofundei um pouco esses saberes e que, amadora como minha mãe, até que lia, como ainda leio cartas razoavelmente bem. Contudo, minhas habilidades estavam bem longe das tiradas geniais de minha mãe.

O tempo foi passando e posso dizer que cresci presenciando esses grandes momentos. Encontros acolhedores das amigas, com café, bolo e muita conversa. Depois minha mãe entrava no quarto, abria a gaveta onde guardava “as cartas” e o clima de expectativa era contagiante, seja por conta da intimidade e da confiança, seja pela sedução de se saber algo sobre o futuro. Esperança, sempre a esperança.

Como se tratava de uma prática bem amadora, não havia nenhum tipo de cerimônia. Apenas certa seriedade no ambiente. E silêncio. Nunca se lê as cartas com TV, rádio ou som ligados. A mesa da cozinha ou da sala poderia servir de base, porque era preciso estender o jogo completo, no caso, as 36 cartas em quatro fileiras de oito mais quatro cartas colocadas bem no centro da quinta fileira. As cartas eram primeiro bem baralhadas. Depois a consulente dava um corte, dividindo o baralho em dois montes que eram novamente unidos para logo depois serem separados em cinco montes pequenos.

Minha mãe era muito habilidosa. Fazia certo suspense antes de “virar” cada um dos 5 cortes, a partir dos quais ela improvisava, de maneira brilhante, uma espécie de roteiro da leitura. Seus olhos verdes brilhavam quando ela ia, aos poucos, revelando as primeiras cinco mensagens que eram como que o eixo da jogada. Algo mais ou menos assim:

— Então é o Sol, que te traz tudo de bom, ilumina, protege, revela. Temos agora o Coração, carta das emoções, do amor, dos sentimentos de quem ama e é amado. A terceira carta é dos Caminhos, que representam a vida que segue, os acontecimentos que se anunciam. Vejamos a próxima carta: eis o Mensageiro, que vem a cavalo, que traz novidades.  Agora a quinta: olha a Carta! Tu vais receber notícias muito em breve. Veremos. Vamos estender o jogo.

 

Era mais ou menos assim que ela fazia a abertura. Sempre improvisando, sem sair do roteiro pré-fixado, que é o significado genérico e tradicional de cada carta. Minha mãe também criou um jogo que ela chamava de “A Cruz de Santo Antônio”. No meio: o que te cobre. Em cima: o presente. À esquerda: o passado. À direita: o futuro. Abaixo do centro, uma sobre a outra: o que tu esperas, o que tu não esperas, o que está em segredo e o que a chave confirma. Em um jogo rápido ela ia descrevendo:

— Ah, te cobre a Cruz, porque estás muito triste. Teu presente tem o Urso, cuidado com gente falsa que te cerca. Teu passado tem o Coração, porque é o amor que partiu, mas no futuro saíram as Alianças. Hum, ele pode voltar. O que esperas: a carta dos Peixes, porque queres dinheiro. O que não esperas: o Caixão. Ainda vais enfrentar dificuldades. Nem tudo foi resolvido. O que está em segredo: saiu a Cobra. Não é a melhor hora de tomar decisões importantes. O que a chave confirma: o Homem. Pode esperar. Ele só não voltou porque precisas organizar tua vida: resolve teus problemas de forma discreta, te afasta de gente maldosa, procura te cuidar, aliviar teu coração dessa Cruz que te cobre. Gente triste atrai mais tristezas. E nunca, nunca saia de casa sem batom e sem uma gotinha mínima de perfume nos pulsos e atrás das orelhas. Eu disse mínima! E sorria. Gente carrancuda é sempre feia.

Não se pode duvidar da riqueza de sentidos que um simples baralho de sorte pode conter. Sol era sempre bom. A Cobra era traição. A Estrela era sucesso. Os Lírios, pureza, mas quando saíam embaixo de alguém, indicavam falta de caráter. Torre com Nuvens era morte certa. Coração era amor. Alianças, união e até casamento. Os Livros eram segredos. O navio, viagem. Tudo era mágico e muito enriquecedor, porque essas práticas acabavam por criar um clima misterioso e — ao menos para mim — divertido. As coisas ruins apareciam, sim, mas minha mãe sempre as anunciava como algo que fazia parte de um todo maior que, mesmo que não pudesse ser superado, acabaria por trazer coisas boas mais tarde.

Aos poucos, o hábito de fazer e receber visitas foi praticamente abandonado. Era mais fácil telefonar. O acúmulo de décadas também implicou na partida de muita gente amiga. O velho baralho cigano chegou a se perder muitas vezes pelo desuso, mas sempre era encontrado em alguma gaveta, enfiado entre toalhas de mesa e panos de prato. Por vezes, alguém do passado lembrava das cartas e a cena se repetia, sempre mágica e impressionante.

Mas o tempo passou. A vida mudou. A gente esqueceu das cartas. Um dia, encontrando o velho baralho meio gasto, mostrei-o a minha mãe e retomei o assunto. Perguntei de onde ela tirava tantas revelações no tempo em que lia cartas para as amigas. Muitas vezes eu assistia as tiragens, via o jogo e entendia as combinações, mas o que minha mãe dizia nem sempre batia com o tema das cartas abertas. Questionei. Ela então falou, rindo bastante por sinal.

— Filha, é simples. As cartas são as cartas. Elas têm um significado particular quando sozinhas e outro quando combinadas, mas isso é o de menos. Importante mesmo não é o que as cartas dizem. Ler as cartas qualquer um lê. Se gostar, vai aprender mais, mas não é isso que importa. O que importa é ler a pessoa. A maioria é mulher e mulher é sempre a mesma coisa: querem saber de homem ou de dinheiro. Às vezes é mais sério: doença, saúde. Isso não muda. E olhando bem, tudo está na nossa frente. Mulheres frustradas por causa de homem são todas iguais. Problemas financeiros e doenças? Basta olhar para saber. Falar disso olhando para as cartas é fácil.  Todos querem poder sonhar com dias melhores e esperar por coisas alegres que façam a diferença. Quem tem que acreditar nas cartas é quem te consulta. Tu tens que acreditar é em ti. E no que podes ler não nas cartas, mas nas pessoas.

Minha mãe era fruto de um tempo em que mulheres competiam. Ela podia ser muito crítica na intimidade:

— Então. A fulana. Lembra? — perguntou.

— Sim, — respondi, porque lembrava dessa colega de trabalho de minha mãe.

— Ela não era feia. Era descuidada. Só comia. Andava de chinelos até na rua. Quando colocava um salto, se queixava de dor nos pés. Não gostava de roupas elegantes, porque achava difíceis de usar. Difícil é andar desarrumada! O marido? Sempre de terno e gravata, bom carro, simpático... Que achas? A carta do Ramalhete indicou outra mulher, a Chave confirmou, as Nuvens escuras ao lado das Alianças. Claro que o desquite ia acontecer! Filha, há coisas que nunca vão mudar. Quanto mais algo te entusiasma hoje, mais certo que te decepcionará amanhã. Melhor não esperar muito de nada nem de ninguém. Por mais que pareça banal, um lugar comum, a vida não passa muito disso.

E fomos assim, eu e minha mãe, passando a limpo os velhos tempos. Lembrando dos vivos, dos mortos e dos mortos-vivos também. Com o passar dos anos, nos tornamos mais próximas. Eventualmente voltávamos às cartas, a pedido de uma ou outra pessoa que, invariavelmente, saia mais leve da “consulta”.

Minha mãe era cética, assim como eu. Ela jamais levou as cartas a sério. A diferença, porém, é que ela nunca deixava que esse ceticismo transparecesse. A imagem que passava era a de uma mulher alegre, faceira, coquete, superficial a ponto de ninguém desconfiar de que conhecia profundamente a alma humana. As aparências enganam. Na verdade, ela já conhecia os segredos que as cartas lhe contavam. Sim, porque, afinal, as cartas não mentem jamais.

REVISTA VIDA BRASIL

segunda-feira, 10 de abril de 2023

A Terra Oca

Pois bem, agora que pouca gente ainda surfa na onda da Terra plana, por que não relembrar a história da Terra oca? Afinal, oca ou plana, a Terra, — nossa casa —, é vista dessas e de outras formas faz tempo. Conceber o que não se percebe em um primeiro olhar é o início do pensar filosófico. Por outro lado, filosofando ou não, nosso planeta dá muito trato à imaginação, esse verdadeiro alimento do espírito, me atrevo a dizer. Então, como já se fala menos de Terra plana, vamos à Terra oca.

Imagino eu que os leitores não ignoram a Teoria da Terra Oca, crença pseudocientífica que sugere que a Terra é oca por dentro e que seu interior é repleto de cavernas, oceanos e até mesmo de civilizações. Essa história teria começado no século XVII com o trabalho do astrônomo e matemático inglês Edmund Halley (1656-1742), que admitiu que a Terra fosse composta de várias esferas concêntricas, cada uma com sua própria atmosfera e habitada por seres inteligentes. Ah, Halley é, sim, o cara do cometa, que foi também matemático e amigo de Isaac Newton. Só não me digam por aí que ele defendeu a Teoria da Terra Oca tal e qual ela é difundida atualmente. Nada disso. Lembrem-se sempre de que parecido não é igual e devemos evitar generalizações pouco inteligentes, imprecisas e precipitadas.

Sim, a teoria moderna da Terra oca foi influenciada pelo trabalho do astrônomo e matemático inglês Edmund Halley. Halley foi famoso por suas pesquisas sobre cometas, mas também estudou outros fenômenos astronômicos e geofísicos, incluindo a estrutura interna da Terra. Halley, em seu livro “Synopsis of the Astronomy of Comets”, publicado em 1692, discutiu uma ampla gama de assuntos astronômicos, incluindo o movimento dos cometas e a estrutura do sistema solar, e apresentou sua teoria sobre a estrutura interna da Terra. Ela seria formada por várias esferas concêntricas, cada uma com seu próprio campo magnético. Quanto a ser habitada por seres inteligentes, eis uma hipótese plausível naquele tempo, se considerarmos as crenças populares da época sobre a existência de um mundo subterrâneo habitado. Mas que fique claro que Halley não defende a teoria da Terra oca da mesma maneira que os proponentes modernos dessa teoria.

Então, sejamos “precisos”, porque buscar a precisão é essencial à vida e à navegação, se é que me entendem: navegar é preciso… Nesse contexto, apesar de sua antiguidade e de sua popularidade em algumas correntes de pensamento esotérico, a Teoria da Terra Oca carece de base empírica ou científica. Muito ao contrário, a maioria das evidências geológicas, físicas e astronômicas sugere que a Terra é sólida e não possui grandes cavidades internas, infelizmente. Digo isso porque seria divertido excursionar pelo centro da terra e, por que não, fazer turismo pelas cidades perdidas. Tudo especulação. Eu mesma, sinceramente, adoro imaginar como seria dar uma voltinha por lá, encontrar o tal buraco de entrada, descer por ele e dar de cara com cidades perdidas, seres inteligentes, outras civilizações. Enfim, o que seria da vida sem a imaginação?

E a imaginação funciona. Com o tempo, a Teoria da Terra Oca foi se ampliando e ganhando adeptos, dentre eles, o famoso almirante Byrd. Já ouviram falar dele? Imagino que sim! Ele foi o cara! Richard E. Byrd teria realizado uma expedição secreta ao Polo Norte em 1947 para investigar a entrada para a Terra oca. Toda história teria sido registrada no diário do almirante Byrd, mas… Alguém adivinha? Pois é, dizem que o governo dos Estados Unidos teria confiscado o diário e ocultado a informação do público. Seja como for, Byrd fez várias expedições ao Ártico e à Antártica ao longo de sua carreira, mas não há evidências de que realizou uma expedição secreta ao Polo Norte em 1947 nem de que encontrou a tal entrada para a Terra oca. Pode-se também afirmar que, à época, a tecnologia disponível não seria adequada para uma expedição desse tipo. Mas confesso que é bom imaginar que, sim, o diário existe e alguém algum dia o trará para algum Arquivo, onde esse documento precioso poderia nos revelar tantos segredos. Eu mesma guardaria aqui em casa esse diário, sem problemas.

Todavia, não temos o diário nem sabemos se Byrd achou o buraco, ou melhor, a entrada para o mundo subterrâneo. Ainda assim, não custa nada procurar saber o que dizem os defensores dessa teoria, porque eles sempre costumam dizer coisas interessantes. Inacreditáveis, é verdade, mas, nem por isso, menos instigantes. De acordo com os defensores da Teoria da Terra Oca, o interior do planeta é habitado por seres inteligentes, que vivem em cidades subterrâneas e que se comunicam através de sistemas avançados de tecnologia. Tais seres descenderiam de uma civilização antiga que teria habitado a superfície da Terra antes da sua ocupação atual pela humanidade.

Por que não sabemos disso “oficialmente”? Ora, porque a existência dessas cidades é mantida em segredo por governos e organizações poderosas, que não querem que a humanidade tenha acesso ao conhecimento e tecnologia que elas possuem. Naturalmente, vocês já ouviram falar de pelo menos duas dessas cidades, já consagradas por sua popularidade: Agartha e Shambala.

Os habitantes de Agartha, por exemplo, vivem em uma sociedade altamente tecnológica.  São seres pacíficos que ajudam a humanidade de maneira sutil, por meio de suas habilidades psíquicas. Não é improvável que os habitantes de Agartha controlem secretamente os destinos da humanidade. Quanto à Shambala, trata-se de um reino secreto habitado por seres iluminados que guardam a sabedoria espiritual e a tecnologia avançada. Que vontade me dá de flanar por essas cidades, quem sabe na companhia de Walter Benjamin? Não conheço ninguém melhor do que ele quando se trata de sair por aí, sem documento nem bagagem.

Excesso de imaginação? Sim, sem dúvida. Eu tenho muita imaginação, confesso. Imaginação e ceticismo de sobra por aqui, aliás. De minha parte, acho a Teoria da Terra Oca menos chata que a Teoria da Terra Plana. Gosto de imaginar como seria a tal entrada para o Mundo Subterrâneo e as mil aventuras que, verdadeiras ou não, pouco importa, são viagens inspiradoras e contagiantes, repositórios culturais, demasiadamente humanos, talvez. Afinal, como diz um querido amigo meu, meu materialismo não me limita, nem a minha imaginação. Não mesmo!

REVISTA VIDA BRASIL

 

domingo, 5 de março de 2023

Objetos Biográficos

Objetos biográficos possuem conexão direta com a vida de alguém. São materiais que frequentemente ajudam a contar histórias e a relembrar acontecimentos marcantes de nossas vidas. Diários pessoais, fotografias, cartas, roupas e mesmo joias podem fornecer informações valiosas sobre a vida e as experiências de alguém, especialmente detalhes, por exemplo, de relacionamentos, passatempos e estados emocionais. O que é significativo, em regra, é guardado.

Por sua importância, objetos biográficos são frequentemente usados em exposições, museus, biografias e outras formas de narrativas que envolvam histórica e memória, por sua utilidade em ilustrar a vida de um modo tangível e concreta, podendo chegar a desvendar intimidades.

Seu estudo suscita bastante interesse. Exemplo disso encontramos na obra An Archive of Feelings: Trauma, Sexuality, and Lesbian Public Cultures, 2003, de Ann Cvetkovich, professora de estudos de gênero e cultural na Universidade do Texas em Austin. Nessa obra, ela analisa como as comunidades LGBTQ+ criaram seus próprios arquivos de objetos biográficos, como diários pessoais, cartas e fotografias, para documentar suas experiências e traumas. Também Carolyn Steedman, 2002, com Dust: The Archive and Cultural History, reflexão sobre como a historiografia moderna lida com a crença herdada do século XIX em um mundo material objetivo e como isso afeta a escrita da história atual. O título, de forma divertida, quer lembrar história, assim como o pó dos arquivos, nunca desaparece por completo. Apenas duas menções tomadas a uma bibliografia que se multiplica talvez tão velozmente quanto os arquivos e os objetos biográficos, ambos correlacionados como elementos que informam a memória e a história.

Os objetos biográficos nos permitem contar histórias sobre a nossa vida e sobre a vida das pessoas que nos rodeiam, ajudando a preservar a memória das gerações passadas para o futuro. Eles registram nossa identidade e nossa cultura, ao mostrar como vivemos e como pensamos em diferentes épocas e lugares. Isso basta para justificar sua proteção e preservação, seja em nível pessoal, seja coletivo, em museus, arquivos e instituições análogas de preservação da memória.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Gabriel Tarde, 1904


 Não apenas a multidão atrai e chama irresistivelmente seu espectador, como seu nome exerce uma prestigiosa atração sobre o leitor contemporâneo, e certos escritores são levados a designar, por esta palavra ambígua, toda sorte de agrupamentos humanos. Importa fazer cessar esta confusão e, notadamente, não confundir com a multidão o Público, vocábulo suscetível de diversas acepções, mas que tratarei de precisar. Diz-se: o público de um teatro, o público de uma assembleia qualquer; aqui, público significa multidão. Mas esta significação não é a única nem a principal e, enquanto sua importância decresce ou permanece estacionária, a idade moderna, após a invenção da imprensa, fez aparecer uma espécie de público totalmente diferente, que não cessa de crescer, e do qual a extensão indefinida é um dos traços mais marcantes de nossa época. Faz-se a psicologia das multidões. Resta fazer a psicologia do público, entendido neste outro sentido, qual seja, como uma coletividade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente separados e cuja coesão é totalmente mental. De onde procede o público, como ele nasce, como ele se desenvolve; suas variedades; suas relações com seus dirigentes; suas relações com a multidão, com as corporações, com os Estados; sua potencialidade para o bem ou para o mal e suas maneiras de sentir e agir: eis o que nos propomos a pesquisar neste estudo.

Nas sociedades animais mais inferiores, a associação consiste sobretudo em um agregado material. À medida em que se eleva sobre a árvore da vida, a relação social torna-se mais espiritual. Mas, se os indivíduos se distanciarem a ponto de não mais se verem, ou permanecerem assim distanciados além de um certo tempo muito curto, eles deixam de ser associados. Ora, a multidão, nisso, apresenta alguma coisa de animal. Não é ela um conjunto de contágios psíquicos essencialmente produzidos por contatos físicos? Mas nem todas as comunicações de espírito a espírito, de alma a alma, têm por condição necessária a aproximação dos corpos. Cada vez menos esta condição é suprida, quando se desenham, em nossas sociedades, as correntes de opinião. Não é nas reuniões de homens na via pública ou na praça pública que nascem e se desenvolvem essas espécies de rios sociais[1], essas grandes correntes que agora tomam de assalto os corações mais firmes, as razões mais resistentes, e que fazem consagrar leis ou decretos pelos parlamentos ou governos.  Coisa estranha: os homens que se deixam arrastar assim, que se sugestionam mutuamente ou, antes, que transmitem uns aos outros a sugestão vinda do alto, esses homens não se acotovelam, não se veem nem se ouvem.  Eles estão sentados, cada um em sua casa, lendo o mesmo jornal e dispersos sobre um mesmo território. Qual é, pois, a ligação que existe entre eles? Esta ligação é, juntamente com a simultaneidade de sua convicção ou de sua paixão, a consciência de cada um deles possui de que essa ideia ou essa vontade é partilhada, no mesmo momento, por um grande número de outros homens. É suficiente que ele saiba isso, mesmo sem ver esses homens, para que seja influenciado por aqueles tomados em massa, e não apenas pelo jornalista, inspirador comum, ele mesmo tanto mais fascinador quanto invisível e desconhecido for.

Gabriel Tarde, 1904.


[1] Observemos que essas comparações hidráulicas vêm naturalmente sob a pluma, cada vez que se trata das multidões como dos públicos. Nisso eles se parecem. Uma multidão em marcha, uma noite de festa pública circulam com lentidão e diversas agitações que lembram a ideia de um rio sem leito preciso, porque nada é menos comparável a um organismo que uma multidão, a não ser um público. São, de preferência, cursos d’água cujo regime é mal definido.


quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Das idades da Vida

Não são apenas os diversos sexos, são as diferentes idades da vida que disputam entre si a preeminência. Esta luta incessante não se resolve sempre nem em toda parte da mesma maneira; suas soluções sucessivas não se seguem sempre e em todo lugar na mesma ordem. Eu admiro aqueles que pretendem regrar de antemão a sorte desses combates.  Ora, ― e este é o caso ordinário ―, o sexo masculino domina; ora, raramente, o sexo feminino; mas a subordinação deste último é mais ou menos completa e varia muito, num sentido ou noutro, segundo as ideias e as paixões dominantes no curso da civilização.  Do mesmo modo, ora a idade madura, ora a juventude, ora a velhice tem o governo dos negócios.  Pode-se dizer que a gerontocracia é muito freqüente entre os povos primitivos, sem todavia ser constante, que a efebocracia é exceção, e que o reino dos homens maduros, no vigor da idade, ―  o que se poderia chamar antropocracia ―,  é o regime normal, o que não quer dizer habitual.  Não houve jamais uma sociedade em que as crianças comandassem como senhores?  Por uns tempos, é possível.  Mas se esta singularidade houvesse existido, seria fundamento para pretender que a pedocracia é uma fase necessária da evolução social, um dos anéis dessa longa corrente?  Eu não vejo mais razão para atribuir esta mesma importância ao matriarcado, à ginecocracia.

Gabriel Tarde (As Transformações do Direito)

domingo, 22 de janeiro de 2023

Prefácio de "L'Opinion et la Foule" de Gabriel Tarde (1904)

A expressão psicologia coletiva ou psicologia social é frequentemente compreendida num sentido quimérico que importa, desde logo, descartar. Tal sentido consiste em conceber um espírito coletivo, uma consciência social, um nós que existiria fora ou acima dos espíritos individuais.  Não temos qualquer necessidade, segundo nosso ponto de vista, dessa concepção misteriosa, para estabelecer, entre a psicologia ordinária e a psicologia social — que chamaremos interespiritual — uma distinção bastante nítida. Enquanto a primeira, com efeito, liga-se às relações do espírito com a universalidade dos outros seres exteriores, a segunda estuda, ou deve estudar, as relações mútuas dos espíritos, suas influências unilaterais e recíprocas — unilaterais primeiro, recíprocas depois. Logo, existe entre ambas, a psicologia ordinária e a psicologia social, a diferença do gênero à espécie. Mas a espécie, aqui, é de uma natureza tão singular e tão importante que deve ser destacada do gênero e tratada por métodos que lhe sejam próprios.

Os diversos estudos que se vão ler são fragmentos da psicologia coletiva assim entendida.  Um estreito liame os une. Pareceu necessário reeditar aqui, para colocá-las em seu devido lugar, o estudo sobre as multidões que figura em apêndice no final do volume[1]. O público, com efeito, objeto especial do estudo principal, é uma multidão dispersa, onde a influência dos espíritos, uns sobre os outros, torna-se uma ação à distância, a distâncias cada vez maiores. Enfim, a Opinião, resumo de todas essas ações de perto ou a distância, é, para as massas e para os públicos, aquilo que o pensamento é, de qualquer sorte, para o corpo. E se, entre essas ações das quais ela resulta, se procurar qual é a mais geral e a mais constante, percebe-se, sem dificuldade, que é esta relação social elementar: a conversação, inteiramente negligenciada pelos sociólogos.

Uma história completa da conversação entre todos os povos e em todas as épocas seria um documento de ciência social do mais alto interesse, e não é duvidoso que, malgrado as dificuldades de um tal assunto, se a colaboração de numerosos pesquisadores conseguisse superá-las, resultaria dessa aproximação dos fatos recolhidos sob esse ponto de vista nas mais diferentes raças, um número considerável de ideias gerais próprias a fazer da conversação comparada uma verdadeira ciência não longe da religião comparada ou da arte comparada ou mesmo da indústria comparada, ou seja, da Economia Política.

Mas, bem entendido, não pude pretender, em algumas páginas, traçar o desenho de semelhante ciência social. À falta de informações suficientes mesmo para esboçá-la, pude apenas indicar seu lugar futuro, e ficaria feliz se, lamentando esta ausência, sugerisse a algum jovem trabalhador o desejo de preencher esta grande lacuna.

 

G. Tarde

 

Maio de 1901

 

 



[1] Na Revue des Deux Mondes, em dezembro de 1893; depois, na Mélanges Sociologiques (Storck & Masson, 1895). Os outros estudos apareceram em1898 e1899 na Revue de Paris.