sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Gabriel Tarde, 1904


 Não apenas a multidão atrai e chama irresistivelmente seu espectador, como seu nome exerce uma prestigiosa atração sobre o leitor contemporâneo, e certos escritores são levados a designar, por esta palavra ambígua, toda sorte de agrupamentos humanos. Importa fazer cessar esta confusão e, notadamente, não confundir com a multidão o Público, vocábulo suscetível de diversas acepções, mas que tratarei de precisar. Diz-se: o público de um teatro, o público de uma assembleia qualquer; aqui, público significa multidão. Mas esta significação não é a única nem a principal e, enquanto sua importância decresce ou permanece estacionária, a idade moderna, após a invenção da imprensa, fez aparecer uma espécie de público totalmente diferente, que não cessa de crescer, e do qual a extensão indefinida é um dos traços mais marcantes de nossa época. Faz-se a psicologia das multidões. Resta fazer a psicologia do público, entendido neste outro sentido, qual seja, como uma coletividade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente separados e cuja coesão é totalmente mental. De onde procede o público, como ele nasce, como ele se desenvolve; suas variedades; suas relações com seus dirigentes; suas relações com a multidão, com as corporações, com os Estados; sua potencialidade para o bem ou para o mal e suas maneiras de sentir e agir: eis o que nos propomos a pesquisar neste estudo.

Nas sociedades animais mais inferiores, a associação consiste sobretudo em um agregado material. À medida em que se eleva sobre a árvore da vida, a relação social torna-se mais espiritual. Mas, se os indivíduos se distanciarem a ponto de não mais se verem, ou permanecerem assim distanciados além de um certo tempo muito curto, eles deixam de ser associados. Ora, a multidão, nisso, apresenta alguma coisa de animal. Não é ela um conjunto de contágios psíquicos essencialmente produzidos por contatos físicos? Mas nem todas as comunicações de espírito a espírito, de alma a alma, têm por condição necessária a aproximação dos corpos. Cada vez menos esta condição é suprida, quando se desenham, em nossas sociedades, as correntes de opinião. Não é nas reuniões de homens na via pública ou na praça pública que nascem e se desenvolvem essas espécies de rios sociais[1], essas grandes correntes que agora tomam de assalto os corações mais firmes, as razões mais resistentes, e que fazem consagrar leis ou decretos pelos parlamentos ou governos.  Coisa estranha: os homens que se deixam arrastar assim, que se sugestionam mutuamente ou, antes, que transmitem uns aos outros a sugestão vinda do alto, esses homens não se acotovelam, não se veem nem se ouvem.  Eles estão sentados, cada um em sua casa, lendo o mesmo jornal e dispersos sobre um mesmo território. Qual é, pois, a ligação que existe entre eles? Esta ligação é, juntamente com a simultaneidade de sua convicção ou de sua paixão, a consciência de cada um deles possui de que essa ideia ou essa vontade é partilhada, no mesmo momento, por um grande número de outros homens. É suficiente que ele saiba isso, mesmo sem ver esses homens, para que seja influenciado por aqueles tomados em massa, e não apenas pelo jornalista, inspirador comum, ele mesmo tanto mais fascinador quanto invisível e desconhecido for.

Gabriel Tarde, 1904.


[1] Observemos que essas comparações hidráulicas vêm naturalmente sob a pluma, cada vez que se trata das multidões como dos públicos. Nisso eles se parecem. Uma multidão em marcha, uma noite de festa pública circulam com lentidão e diversas agitações que lembram a ideia de um rio sem leito preciso, porque nada é menos comparável a um organismo que uma multidão, a não ser um público. São, de preferência, cursos d’água cujo regime é mal definido.


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