domingo, 5 de janeiro de 2025

O Passado Objetivo Faz Diferença?


As nossas memórias são falhas. Podemos nos lembrar de coisas que nunca aconteceram e nos esquecer de outras que aconteceram de fato. Apesar das falhas da memória, os acontecimentos passados reais podem desempenhar um papel fundamental para determinar quem somos. É possível que, apesar de não conseguirmos nos lembrar do passado, a essência de nossas vidas seja determinada por ele. Ainda assim, cada vez mais os psicólogos têm questionado essa hipótese, apontando a dificuldade em se estabelecer uma relação clara entre os acontecimentos passados negativos e as consequências negativas, assim como a relação entre os acontecimentos passados positivos - como as intervenções e as consequências positivas.

Martin Seligman, ex-presidente da Associação Americana de Psicologia, escreveu:

 

Acho que os acontecimentos da infância são superestimados. Na verdade, eu acho que o histórico do passado em geral é superestimado. É difícil encontrar até mesmo os efeitos pequenos dos acontecimentos da infância na personalidade do adulto, e não há nenhuma prova de grandes efeitos, muito menos de algum efeito determinante. Os maiores traumas da infância podem exercer alguma influência na personalidade do adulto, mas somente uma pequena influência que mal se consegue detectar. Resumindo, os acontecimentos ruins da infância não provocam forçosamente os problemas da idade adulta. Não há nada nesses estudos que sustente a atitude de colocar a culpa de nossa depressão, ansiedade, casamento infeliz, uso de drogas, problemas sexuais, desemprego, agressão contra os filhos, alcoolismo ou raiva da idade adulta no que aconteceu quando éramos crianças.

 

Então, o que é certo? Será que o passado determina as nossas vidas ou será que ele é superestimado?

Nós, os autores, acreditamos que o passado tem sua importância, mas ele

faz menos diferença do que Freud e os behavioristas alegaram. Todos são afetados pelo passado objetivo, mas não são determinados totalmente por ele. Além disso, não são os acontecimentos do passado que exercem a maior influência em nossas vidas. As nossas atitudes em relação ao passado são mais importantes que os próprios acontecimentos. A diferença entre o passado e a interpretação atual que fazemos dele é decisiva, porque é ela que oferece a esperança de mudança. Você não tem condições de mudar o que aconteceu no passado, mas pode mudar suas atitudes em relação ao que já passou. Às vezes, trocar a moldura pode alterar a maneira como você vê a pintura.

 

FONTE: Zimbardo, P., & Boyd, J. (2008). O paradoxo do tempo (S. Adriano, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, p. 89.

 

Comentário: A passagem destaca a fragilidade da memória humana e a complexidade em estabelecer uma correlação direta entre experiências passadas e os resultados presentes, questionando visões tradicionais, como as de Freud e dos behavioristas, que tendiam a enfatizar o determinismo do passado na psique e no comportamento.

A citação de Seligman, uma autoridade no campo da psicologia positiva, reforça a ideia de que, embora os eventos da infância possam ter algum impacto, eles não são tão determinantes quanto muitas vezes se assume, observação que contribui para uma abordagem mais equilibrada e menos fatalista do desenvolvimento humano, sugerindo que o passado, não obstante sua inegável relevância, não é imutável.

No contexto do homem comum e da vida cotidiana, essa reflexão se mostra bastante significativa, porque oferece uma nova perspectiva ao sugerir que a forma como interpretamos nosso passado pode ser mais importante do que os eventos em si. Isso propõe uma reconfiguração do próprio significado das experiências passadas, transformando traumas e dificuldades em oportunidades para crescimento e resiliência.

Ao enfatizar que "as nossas atitudes em relação ao passado são mais importantes que os próprios acontecimentos", os autores propõem algo prático, que encoraja a reinterpretação e a adaptação contínua. Essa mensagem é particularmente relevante em sociedades contemporâneas, onde a autoavaliação e a busca por bem-estar psicológico são cada vez mais valorizadas. A ideia de "trocar a moldura" para alterar a percepção de eventos passados promove uma flexibilidade cognitiva que pode ser um recurso valioso na gestão de desafios pessoais e interpessoais.

Em suma, essa reflexão oferece uma contribuição relevante ao campo da psicologia prática, proporcionando uma abordagem que equilibra o reconhecimento da importância do passado com a ênfase no poder transformador das atitudes presentes. Tal visão não apenas ressignifica experiências pessoais, como também fomenta uma cultura de responsabilidade individual.

 

domingo, 29 de dezembro de 2024

O Experimento de Stanford: Até que ponto cedemos ao mal?

Você já ouviu falar do famoso Experimento de Stanford? Ele é um marco na psicologia e nos ajuda a entender até que ponto somos capazes de ceder ao mal, mesmo sem querer.

O experimento foi idealizado por Philip Zimbardo, um psicólogo norte-americano estudioso do comportamento humano, especialmente em situações extremas. Consta que Zimbardo teria se inspirado em Gustave Le Bon e suas ideias acerca da desindividualização e consequente perda da identidade pessoal. Assim, em 1971, ele transformou o porão da Universidade de Stanford em uma prisão simulada para investigar como pessoas comuns reagiriam ao assumir papéis de prisioneiros e guardas, que terminaram por internalizar tais papeis.

Os participantes, homens jovens e aparentemente saudáveis, foram selecionados meio de testes psicológicos. Metade foi aleatoriamente designada como "guardas" e a outra metade como "prisioneiros". Os objetivos? Examinar como o ambiente influencia comportamentos e entender até que ponto as pessoas podem se tornar cruéis ou submissas.

O problema? As coisas saíram completamente do controle. Os "guardas" rapidamente adotaram comportamentos abusivos, enquanto os "prisioneiros" mostraram sinais de sofrimento extremo, incluindo crises emocionais. A situação ficou tão tensa que experimento foi interrompido depois de apenas seis dias.

O experimento, ainda assim, levou a muitas reflexões e ainda inspirou um dos mais conhecidos livros de Zimbardo, O Efeito Lúcifer, no prólogo do qual ele faz as seguintes observações:

Se eu tivesse escrito este livro logo após terminar o experimento da prisão de Stanford, teria me contentado em explicar que as forças situacionais têm mais poder do que pensamos para moldar nosso comportamento em muitos contextos. No entanto, teria deixado de lado o poder ainda maior de criar o mal a partir do bem: o poder do Sistema, esse complexo de forças poderosas que criam a Situação. A psicologia social oferece inúmeras evidências de que o poder da situação pode ser mais forte do que o poder da pessoa em determinados contextos. Exporei essas evidências em vários capítulos. No entanto, muito poucos psicólogos se interessaram pelas fontes mais profundas de poder inerentes à matriz política, econômica, religiosa, histórica e cultural que define as situações e lhes confere uma entidade legítima ou ilegítima. A compreensão plena da dinâmica do comportamento humano nos exige reconhecer a extensão e os limites do poder pessoal, do poder situacional e do poder sistêmico. Modificar ou impedir um comportamento censurável por parte de pessoas ou grupos exige uma compreensão das forças, virtudes e vulnerabilidades que essas pessoas ou grupos trazem para uma situação dada. Em seguida, devemos reconhecer plenamente o conjunto de forças situacionais que atuam nesse contexto comportamental.

O que aprendemos com isso?

A desindividualização diminui a responsabilidade pessoal, a uma visão reduzida das consequências de nossos atos. Ela enfraquece a culpa, a vergonha e o medo que inibem comportamentos reprováveis e mesmo destrutivos, especialmente porque ações próprias são percebidas como do grupo. O ambiente e os papéis sociais têm um poder enorme sobre o comportamento humano, às vezes nos levando a atitudes que jamais imaginaríamos adotar. Às vezes, o contexto pode mudar tudo. O experimento repercutiu muito e até hoje é objeto de discussões e de questionamentos.  Não faltaram críticas acerca da falta de controle ético do estudo e de seu impacto psicológico nos participantes. Contudo, não se pode deixar de refletir sobre a pertinência desse estudo, bem como das observações de Zimbardo sobre o poder das forças movidas pelo Sistema, que criam e moldam as forças situacionais.