Chamava-se Giulio Cesare Lucilio Vanini. Dele disseram que foi um homem de boa aparência, um pouco magro, alto, com cabelos desgrenhados, nariz comprido e curvo, olhos brilhantes e ligeiramente acinzentados. Condenado pela Santa Inquisição, foi entregue nas mãos do executor, que o expôs em frente à porta principal da igreja metropolitana de Saint-Estienne. Vestia uma camisa. Sobre o peito, o colarinho e, sobre os ombros, um cartaz contendo estas palavras: “Ateu e blasfemador do nome de Deus”. De joelhos, cabeça e pés descalços, segurando nas mãos uma tocha acesa, ele deveria pedir perdão a Deus, ao rei e à justiça. Em vez disso, no entanto, diz-se que teria proferido uma terrível blasfêmia: “Illi [Cristo] in extremis præ timore imbellis sudor, ego imperterritus morior.” Então, preso a uma estaca, depois de ter a língua cortada, foi estrangulado, tendo seu corpo queimado em uma fogueira e suas cinzas lançadas ao vento[1].
O ano é 1619, a cidade é Toulouse, França. A cena impressiona e o sujeito, não menos. Vale o tempo investido em um estudo, não obstante a complexidade das fontes primárias implicadas na pesquisa. O julgamento de Vanini, quando examinado do ponto de vista das narrativas que o transpuseram ao patamar da história, revela-nos a dinâmica do poder, a construção de inimigos internos e a manutenção da ordem social através da exclusão e punição de indivíduos considerados desviantes. O mundo mudou, a história concluiu seus julgamentos, mas seriam vãos quaisquer esforços em pretender uma hegemonia. O passado em si não existe mais. Ele comporta apenas versões construídas a partir da experiência de sujeitos que não têm como nos alcançar uma realidade objetiva, porquanto sua experiência do mundo sempre estará sujeita à influência de elementos do imaginário e do simbólico, quando não dos interesses implicados. É preciso, acima de tudo, buscar entender o cenário em que se deram os fatos que desejamos estudar, não nos esquecendo de que fontes jamais são neutras.
[1] Cousin, V. (1856). Vanini ou la philosophie avant Descartes. Didier.