terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Giulio Cesare Lucilio Vanini

Chamava-se Giulio Cesare Lucilio Vanini. Dele disseram que foi um homem de boa aparência, um pouco magro, alto, com cabelos desgrenhados, nariz comprido e curvo, olhos brilhantes e ligeiramente acinzentados. Condenado pela Santa Inquisição, foi entregue nas mãos do executor, que o expôs em frente à porta principal da igreja metropolitana de Saint-Estienne. Vestia uma camisa. Sobre o peito, o colarinho e, sobre os ombros, um cartaz contendo estas palavras: “Ateu e blasfemador do nome de Deus”. De joelhos, cabeça e pés descalços, segurando nas mãos uma tocha acesa, ele deveria pedir perdão a Deus, ao rei e à justiça. Em vez disso, no entanto, diz-se que teria proferido uma terrível blasfêmia: “Illi [Cristo] in extremis præ timore imbellis sudor, ego imperterritus morior.” Então, preso a uma estaca, depois de ter a língua cortada, foi estrangulado, tendo seu corpo queimado em uma fogueira e suas cinzas lançadas ao vento[1].

O ano é 1619, a cidade é Toulouse, França. A cena impressiona e o sujeito, não menos. Vale o tempo investido em um estudo, não obstante a complexidade das fontes primárias implicadas na pesquisa. O julgamento de Vanini, quando examinado do ponto de vista das narrativas que o transpuseram ao patamar da história, revela-nos a dinâmica do poder, a construção de inimigos internos e a manutenção da ordem social através da exclusão e punição de indivíduos considerados desviantes. O mundo mudou, a história concluiu seus julgamentos, mas seriam vãos quaisquer esforços em pretender uma hegemonia. O passado em si não existe mais. Ele comporta apenas versões construídas a partir da experiência de sujeitos que não têm como nos alcançar uma realidade objetiva, porquanto sua experiência do mundo sempre estará sujeita à influência de elementos do imaginário e do simbólico, quando não dos interesses implicados. É preciso, acima de tudo, buscar entender o cenário em que se deram os fatos que desejamos estudar, não nos esquecendo de que fontes jamais são neutras.


[1] Cousin, V. (1856). Vanini ou la philosophie avant Descartes. Didier.

domingo, 20 de outubro de 2024

O REALISMO SOCIALISTA, FORMA DO IDEALISMO


"Herbert Read diz, com razão, que o problema que o realismo socialista levanta é um falso problema, já que só existem duas formas de arte: a boa e a má. A arte boa é sempre uma síntese dialética do que é real e do que é irreal, da razão e da imaginação. Ao ignorar essa contradição, ao querer forçá-la em favor de uma única antinomia, o realismo socialista deixa de ser dialético e retrocede a uma espécie de idealismo. Tenta impor um objetivo intelectual e doutrinário à arte. Por outro lado, o propósito de alcançar as massas e realizar propaganda tem um resultado previsível: mal se consegue o arte do cartaz, e do cartaz no pior sentido do naturalismo."

Sabato, E. (1963). El escritor y sus fantasmas (Editor digital: Moro, ePub base r1.0).

Você concorda com esta provocativa citação sobre o realismo socialista e sua relação com o idealismo no campo da arte? Read[1] argumenta que o realismo socialista, ao tentar impor uma visão unidimensional à arte, acaba por se afastar da verdadeira essência da criatividade, que deve ser uma síntese dialética entre o real e o irreal, a razão e a imaginação. Esse conceito dialético é fundamental na filosofia, especialmente na tradição hegeliana, onde a contradição é vista como um motor de desenvolvimento e transformação. O assim chamado "falso problema" seria a tentativa de forçar a arte a servir a um objetivo político ou ideológico específico. Ao fazer isso, o realismo socialista não só ignoraria a complexidade da experiência humana, como também se tornaria uma forma superficial de arte, do que resultaria uma propaganda desprovida do as expressão que toda arte, em tese, deve possuir. O que seria, todavia, uma “arte verdadeira”? Segundo Read, a verdadeira arte teria lugar em um espaço no qual razão e imaginação pudessem coexistir e influenciar-se mutuamente. Essa síntese dialética é o que permitiria à arte refletir a condição humana em toda sua complexidade: lutas e realidades sociais, aspirações e sonhos individuais. Ao tentar comunicar uma mensagem política de maneira direta, o realismo socialista corre o risco de reduzir o arte a um nível superficial, transformando-o em “arte de cartaz”, na qual a estética se torna secundária à mensagem, levando a obras que são mais didáticas do que inspiradoras. Quando mal utilizado, o naturalismo se aproxima de uma forma de simplificação, onde as nuances da vida são perdidas em favor de representações cruas e diretas. É importante reconsiderar a função da arte na sociedade, porque ela não deve jamais ser um mero reflexo da ideologia ou um veículo de propaganda, mas, sim, a expressão rica e multifacetada da condição humana.

 


[1] Sir Herbert Edward Read (1893-1968) foi um poeta anarquista e crítico de arte e de literatura britânico. Foi nomeado cavaleiro em 1953. Obteve o Prêmio Erasmo em 1966. Foi criado numa fazenda e serviu como oficial na Primeira Guerra Mundial. Fonte: Wikipédia.