segunda-feira, 23 de setembro de 2024

ENTRE A PALAVRA E O SILÊNCIO Reflexões sobre uma passagem de Derrida

Seguindo os quatro argumentos anteriores, eu evitaria erros (erros de polidez, erros morais etc.) ao não responder, ao responder de forma elíptica, ao responder de forma oblíqua. E me seria dito: é melhor, é mais justo, é mais decente, mais moral também, não responder; é mais respeitoso com o outro, mais responsável diante do imperativo do pensamento crítico, hipercrítico e sobretudo "deconstrutivo" que exige ceder o menos possível aos dogmas e às pressuposições. Mas veja, se eu seguisse todas essas boas razões e, acreditando ainda que essa não-resposta é a melhor resposta, decidisse não responder, então correria riscos ainda piores. Quais?

1.   Primeiro, a primeira injúria ou injustiça seria parecer não levar suficientemente a sério as pessoas e os textos que estão aqui ofendidos, testemunhando em relação a eles uma ingratidão inadmissível e uma indiferença culpada.

2.   Em segundo lugar, explorar as "boas razões" para não responder para fazer um uso ainda estratégico do silêncio: pois há uma arte da não-resposta ou da resposta adiada que é uma retórica da guerra, uma astúcia polêmica. O silêncio polido pode se tornar a arma mais insolente e a ironia mais mordaz. Sob o pretexto de esperar ter relido, meditado, trabalhado para começar a responder seriamente (o que será de fato necessário e pode demandar uma eternidade), a não-resposta como resposta adiada ou como resposta evasiva, até mesmo absolutamente elíptica, pode sempre colocar confusamente a salvo de qualquer objeção. E sob o pretexto de não se sentir capaz de responder ao outro e a si mesmo, não minamos, teoricamente e praticamente, o conceito de responsabilidade, na verdade a essência mesma do sócio?

3.   Justificando sua não-resposta por todos esses argumentos, refere-se ainda a regras, a normas gerais; portanto, falta ao princípio de polidez e responsabilidade que lembramos anteriormente: nunca se crer livre de qualquer dívida e por isso nunca agir simplesmente segundo uma regra, conforme o dever nem mesmo por dever, ainda menos "por polidez". Nada seria mais imoral e mais impolido.

4.   Nada seria pior do que substituir uma resposta insuficiente, é certo, mas que ainda testemunha um esforço sincero, modesto, finito e resignado por um discurso interminável. Este fingiria oferecer, em lugar de uma resposta ou de uma não-resposta, um performativo mais ou menos performativo e mais ou menos meta-linguístico sobre todas essas questões, não-questões ou não-respostas. Uma tal operação se exporia às críticas mais justificadas; ela ofereceria seu corpo; ela entregaria, como em sacrifício, o corpo mais vulnerável aos golpes mais justos. Pois sofreria de um duplo defeito; acumularia duas faltas aparentemente contraditórias: 1. a pretensão de domínio ou de sobrevoo (meta-linguístico, meta-lógico, meta-metafísico etc.) e 2. o tornar-se obra de arte (performance ou performativo literário, ficção, obra), jogo estetizante de um discurso do qual se esperava uma resposta séria, pensante ou filosófica.

O Que Fazer?

Então o que fazer? É impossível aqui responder: é impossível responder a essa questão sobre a resposta. É impossível responder à pergunta pela qual nos perguntamos precisamente se devemos responder ou não responder; se é necessário, possível ou impossível. Esta aporia sem fim nos imobiliza porque nos liga duplamente (eu devo e eu não devo; eu devo não; é necessário e impossível etc.). Em um mesmo lugar, sobre o mesmo dispositivo estão as duas mãos atadas ou cravadas. O que fazer? Mas também o que acontece já que isso não impede de falar, de continuar descrevendo a situação, de tentar ser ouvido? De que natureza é essa linguagem já que ela não pertence mais simplesmente nem à questão nem à resposta das quais viemos e das quais ainda estamos verificando os limites? Em que consiste essa verificação que nunca vai sem algum sacrifício? Chamaremos isso um testemunho em um sentido que nem o martírio nem a atestação nem o testamento esgotariam? E desde que isso nunca seja reduzido exatamente à verificação, à prova ou à demonstração; em uma palavra: ao saber?

 

DERRIDA, Jacques. Passions. Paris: Galillé, 1993.

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Jacques Derrida é conhecido por suas contribuições à teoria da desconstrução e à filosofia contemporânea. Ele expõe, neste texto, a complexidade da linguagem, a relação entre texto e significado, e os desafios da comunicação e da interpretação e a responsabilidade ética que emerge dos impasses cotidianos. Quem nunca os teve? O que responder quando não há o que dizer ou quando há tanto a dizer que só o silêncio seria capaz de expressar? Ao abordar a questão da não-resposta e suas implicações, Derrida nos convida a considerar não apenas a natureza da linguagem, mas também as relações interpessoais e sociais que essa linguagem sustenta.

A vida cotidiana não raramente nos coloca diante de dilemas. Um deles consiste na dificuldade de responder adequadamente a situações que exigem uma postura ética e crítica. A não-resposta pode parecer, à primeira vista, uma escolha prudente, evitando erros de polidez ou injustiças. No entanto, essa escolha também pode ser vista como uma forma de desresponsabilização. O autor sugere que a recusa em responder pode ser interpretada como uma ingratidão ou indiferença em relação ao outro, revelando um aspecto paradoxal da comunicação humana: ao evitar o confronto, podemos, inadvertidamente, perpetuar o silêncio e mesmo a opressão.

Uma reflexão pertinente? Acredito que sim, porque não é incomum nos depararmos com questões sociais e políticas que demandam uma resposta clara e consciente. A hesitação pode ser interpretada como reflexo de tensões entre o desejo de ser respeitoso e a necessidade de agir de maneira responsável. Optar pelo silêncio ou pela evasão significa exatamente o que em um mundo saturado de informações?

Com seus jogos de palavras de múltiplas nuanças, Derrida nos lembra que um significado nunca é fixo. Ele está sempre em movimento. Significados se transformam conforme contextos e interações. Aliás, é esta a ideia da passagem aqui discutida: a não-resposta, ele não apenas aborda a falta de comunicação, mas também provoca uma reflexão sobre o que significa realmente "responder". Presença e ausência são um jogo que pode servir para que se compreenda um pouco melhor a forma como nos relacionamos com os outros e conosco.

Por que não refletir com alguma profundidade sobre os impasses cotidianos que enfrentamos nas interações humanas? A não-resposta pode ser tanto uma estratégia defensiva quanto uma forma de evasão moral. Esta dualidade nos leva a reconsiderar o peso de nossas abordagens comunicativas e a assumir uma postura mais responsável diante das complexidades do diálogo humano. Não se trata apenas de uma análise crítica da linguagem, mas de um convite a um compromisso ético com o outro. E parece que isso é tanto mais necessário quanto pode ser impossível. A escolha entre a palavra e o silêncio, redescobrimos novas formas de fazermo-nos presente uns para os outros neste mundo repleto de tantas e tão desconcertantes incertezas.

             

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

JEANNE DES ANGES E A POSSESSÃO DEMONÍACA EM LOUDUN: Psicologia Coletiva e o contágio emocional no século XVII

O livro trata do julgamento de Urbain Grandier e do episódio de possessão demoníaca que teve lugar no convento das Ursulinas de Loudun, na França do século XVII. Esses eventos são explorados como exemplos da forma como a justiça institucionalizada pode servir como instrumento de poder, legitimando práticas que se distanciam da verdade ou da justiça em seu sentido mais puro. A autora fundamenta sua análise em uma ampla gama de fontes primárias e secundárias. Além de uma investigação histórica, o livro dialoga com questões contemporâneas ligadas à história social e à psicologia social, examinando como as sociedades definem e tratam conceitos de desvio e normalidade. A metodologia empregada combina a análise histórica com a teoria crítica da psicologia social, buscando revelar as estruturas subjacentes de poder que moldam processos sociais e investigar como as pessoas podem resistir e transformar essas estruturas. A própria história é assim tratada como um campo de disputa onde diferentes narrativas competem por hegemonia, enquanto a psicologia social ajuda a compreender como essas narrativas moldam percepções e comportamentos. A figura de Jeanne des Anges é particularmente destacada, revelando as complexas dinâmicas de gênero e poder na sociedade do século XVII. A análise mostra que, mesmo confinadas, as mulheres desempenhavam papéis ativos e influentes, capazes de manipular e subverter as estruturas de poder da época. Este livro convida o público acadêmico a refletir sobre a natureza do poder e da justiça, desafiando as narrativas oficiais e promovendo uma compreensão mais profunda dos mecanismos sociais que moldam a vida coletiva.

Disponível em:  https://www.amazon.com.br/dp/B0DDK19V7V

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A Sociedade do Espetáculo: uma análise comparativa entre Debord e Baudrillard

A obra "A Sociedade do Espetáculo", de Guy Debord, publicada em 1967, é considerada uma das mais influentes análises críticas da sociedade contemporânea. Nela, Debord desenvolve uma perspectiva radical sobre a dominação da vida social pela lógica da mercadoria e da imagem, fenômeno que ele denomina "espetáculo". Essa análise encontra ressonância em diversos temas abordados pelo sociólogo Jean Baudrillard, que também se debruçou sobre a crescente centralidade da imagem e do simulacro na sociedade pós-moderna.

O ponto de partida de Debord é a constatação de que "toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos". Essa "acumulação de espetáculos" reflete a separação entre a realidade vivida e sua representação, de modo que "tudo o que era diretamente vivido se afastou em uma representação". Nessa perspectiva, a vida social é cada vez mais mediada por imagens e simulacros, que se autonomizam e se tornam a realidade dominante.

Essa dinâmica de separação e autonomização da imagem em relação à realidade vivida é um tema central também na obra de Baudrillard, para quem a sociedade contemporânea é marcada pela proliferação de signos e simulacros que se descolam de qualquer referente real, constituindo uma "hiper-realidade" que suplanta a própria realidade. Assim como Debord, Baudrillard identifica nesse processo uma forma de dominação social, na medida em que a "hiper-realidade" do espetáculo e do simulacro se impõe como a realidade dominante.

Outro ponto de convergência entre os dois autores é a crítica à mercantilização da cultura e da vida social. Tanto Debord quanto Baudrillard apontam para a transformação da cultura em mercadoria, processo que Debord denomina "a cultura tornada integralmente mercadoria". Nesse contexto, a própria imagem se torna uma mercadoria a ser consumida, em um movimento de "consumpção espetacular" que conserva a cultura do passado de forma congelada e descontextualizada.

No entanto, apesar dessas convergências, é possível identificar algumas diferenças importantes entre as abordagens de Debord e Baudrillard. Enquanto Debord mantém uma perspectiva ancorada na teoria marxista, com ênfase na luta de classes e na possibilidade de uma transformação revolucionária da sociedade, Baudrillard adota uma postura mais pessimista e niilista, enfatizando a impossibilidade de qualquer forma de resistência efetiva diante da onipresença do simulacro. Para Debord, a dominação do espetáculo é inseparável da lógica da mercadoria e do desenvolvimento do capitalismo, e só pode ser superada por meio da ação revolucionária do proletariado. Já Baudrillard parece ver o simulacro como uma condição inescapável da sociedade contemporânea, sem vislumbrar qualquer possibilidade de transformação radical.

Essa diferença de perspectiva se reflete também na forma como cada autor aborda a questão da alienação. Debord concebe a alienação como um processo histórico e social, resultado do desenvolvimento do capitalismo e da lógica da mercadoria, passível de superação pela ação revolucionária. Para ele, a alienação não é uma condição permanente, mas algo passível de superação pela ação revolucionária do proletariado, que pode romper com a dominação do espetáculo. Ou seja, Debord mantém uma visão dialética, acreditando na possibilidade de transformação histórica.

Já Baudrillard tende a ver a alienação de forma mais pessimista, como uma condição ontológica da existência humana na era do simulacro. Para ele, a proliferação dos signos e imagens descolados da realidade cria uma "hiper-realidade" que suplanta a própria realidade, tornando a alienação uma condição inescapável. Baudrillard não vislumbra caminhos claros para a superação dessa alienação, adotando uma postura mais niilista.

Portanto, a divergência entre Debord e Baudrillard quanto à concepção da alienação está intimamente ligada a suas diferentes perspectivas sobre a possibilidade de superação da dominação do espetáculo e do simulacro na sociedade contemporânea

Apesar dessas divergências, é inegável a importância e a atualidade das análises de Debord e Baudrillard para a compreensão da sociedade contemporânea. Ambos os autores contribuíram de forma decisiva para a crítica da dominação da imagem, da mercadoria e do espetáculo, fenômenos que se tornaram cada vez mais centrais na organização da vida social nas últimas décadas. Nesse sentido, a comparação entre as perspectivas de Debord e Baudrillard pode lançar luz sobre as complexidades e contradições da sociedade do espetáculo, abrindo caminhos para uma compreensão mais profunda de seus mecanismos de dominação e das possibilidades de sua superação.