domingo, 16 de novembro de 2025

O publico e a imprensa (grafia original conservada)

 

FONTE: O publico e a imprensa. (1901, outubro 1). Diario de Pernambuco, 77(134), p. 1.

O publico e a imprensa

A psychologia póde ser estudada debaixo de dois pontos de vista: Debaixo do ponto de vista collectivo — psychologia inter-cerebral; debaixo do ponto de vista individual — psychologia intra-cerebral.

Na psychologia collectiva é preciso não confundir a psychologia das raças com a psychologia das multidões, confusão que tem dado logar aos mais lastimaveis erros na apreciação e direcção dos acontecimentos sociaes.

Nota Gustavo Le Bon que Napoleão I comprehendia a psychologia das multidões, mas ignorava a das raças. Taine, que desenvolveu tão brilhantemente sua theoria da raça, do meio e do momento historico, desconheceu a alma das multidões.

Occupando-nos com a psychologia collectiva, já tivemos occasião de escrever que não basta distinguir a psychologia das raças da psychologia das multidões, é preciso completar uma e outra com a psychologia dos sexos.

Sem o estudo profundo da psychologia dos sexos, dissemos, trabalho que está sendo feito com passo firme depois que foi desvendado pelos biologistas o segredo da fecundação, é impossivel a solução de certas questões, que estão na ordem do dia, e sobre as quaes se têm produzido as opiniões mais contraditorias e phantasiastas.

Entre ellas está a dos direitos da mulher, com os exaggeros de parte a parte, e o velho e gasto chavão de que todo o orgão, que não se exerce, se atrophia fatalmente.

É collocar mal a questão pôl-a sobre o terreno da falta de exercicio cerebral nas mulheres. Por este lado, para estabelecer o equilibrio, seria preciso refazer toda a historia natural da creação, e comprehende-se que «o que foi decidido entre os protozoarios prehistoricos, não póde ser annullado por um acto do parlamento».

Mas, quando mesmo fosse possivel dar ao cerebro da mulher a mesma modalidade do cerebro do homem, haveria vantagem em provocar semelhante transformação?

Sob a influencia de certas excitações as glandulas mammillares no homem podem produzir secreção lactea; porém nenhuma vantagem resultaria para o sexo masculino semelhante funcção.

O progresso dos costumes e instituições não apagará distincções, que existem ab ovo. O que vemos, pelo contrario, é que o desenvolvimento entre os individuos e as sociedades accentúa cada vez mais a divisão das funcções.

Seria desconhecer esta lei pretender assimilar os sexos ou restabelecer a superioridade de um sobre o outro.

«Os dous sexos, diz Alfredo Fouillée, em sua diversidade necessaria, são dependentes um do outro, e se valem um e outro.»

Ha uma psychologia das raças, uma psychologia das multidões, uma psychologia dos sexos; restava fazer a psychologia do publico.

Foi a tarefa, de que se encarregou G. Tarde, escrevendo seu interessante livro L’Opinion et la Foule.

O publico não se confunde com a multidão. Esta tem como condição essencial a aproximação, o contacto dos indivíduos, ao passo que aquelle é constituído por um todo mais extenso e mais disperso. Na multidão os indivíduos se influenciam uns sobre os outros pelo contagio dos corpos, póde-se dizer; no publico os indivíduos não se vêem uns aos outros, e cada um permanece sujeito a todas as influencias ambiantes.

Dahi a grande differença que vai entre o orador e o jornalista, entre o discurso e o artigo, exercendo o jornal influencia muito mais extensa e duradoura do que a tribuna.

Em regra se póde affirmar que um publico tem a imprensa que elle merece; mas isto não quer dizer que o jornalista não possa influir efficazmente sobre o publico.

Não raras vezes a injuria, a calumnia, a diffamação, a pornographia são condições de successo na imprensa, lisonjeando o jornal as paixões grosseiras do maior numero; mas o jornalista não deve elevar o consensus do vulgo á altura de linha de conducta no desempenho de sua tarefa.

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COMENTÁRIO


COMENTÁRIO 

Pois bem — a notícia realmente desperta interesse imediato, tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Conservar a grafia original é um gesto de fidelidade; uma maneira de manter vivo o sabor da época. Quem me conhece sabe o valor que dou às fontes primárias. Mais do que registros, são testemunhos. No caso, trata-se da notícia veiculada em um jornal pernambucano de 1901. Ele circulava entre leitores específicos, pertencentes a um público que se reconhecia naquele discurso e que buscava, junto à imprensa, elementos que orientassem seu entendimento do mundo.

É isso que torna o texto ainda mais interessante. É a chegada de um novo século e de suas promessas — progresso, ciência, racionalidade — coexistindo, paradoxalmente, com a permanência: o conservadorismo, a resistência às transformações, o medo de rupturas. — Mas não é essencial agradar a todos os leitores? — A própria forma do argumento já nos revela essa tensão: o autor pretende situar-se “à meia distância”, longe dos “exaggeros” de um e de outro lado. Um velho artifício, por sinal. Dar-se a ver como um moderado é, frequentemente, uma forma de afetar certa autoridade.

Ah! Mas vejam a frase “o publico tem a imprensa que elle merece”. Escritor e leitor percebem-se reciprocamente, porquanto o jornal molda o público, mas também é moldado por ele. Sem falar do fato de o autor do artigo ter a si próprio em alta conta. Ele não se vê nem se apresenta como mero cronista. Vê-se como elemento ativo que intervém, orienta, educa. Mais que um observador, um verdadeiro agente da esfera pública. Seu artigo é, em si mesmo, um exercício de influência.

Sem dúvida, um homem culto, eis que leu Gabriel Tarde, que cita nominalmente. A distinção que faz entre público e multidão é tardiana. A preocupação em diferenciar a massa aglomerada da coletividade dispersa — influenciada não por “contágio dos corpos”, mas pela circulação de ideias — surge claramente da psicologia coletiva tal como se discutia nesse período. A presença de Le Bon também é explícita. Eis, portanto, as referências científicas que atuam como autoridades legitimadoras.

Sejamos sistemáticos: uma fonte primária como essa não vale apenas pelo conteúdo informativo. O que ela informa é importante, mas não é tudo. A informação deve ser lida sempre à luz de seu tempo e de suas circunstâncias. Fontes primárias revelam mais profundamente suas intencionalidades, seus pressupostos, suas hierarquias de valor, suas ausências. Sim. Se dizem aquilo que querem dizer, também revelam o que sequer supõem estar revelando.

Basta que imaginemos o leitor. Um morador de Recife que, em 1901, sentado em sua poltrona — talvez ainda à luz do lampião — folheou um exemplar idêntico desse jornal e ali encontrou, quem sabe, “psychologia”, “sciencia”, “progresso”, “advertências de ordem moral”. Como será que ele via essa questão dos sexos? Como reagia à ideia de que a mulher teria “direitos”? A palavra não esconde certo desconforto. E qual seria exatamente a autoridade da biologia para um juízo adequado? Note-se que a ciência, nesse contexto, é mobilizada para reafirmar limites, não para expandi-los. A distinção entre homens e mulheres é descrita como algo decidido pelos “protozoarios prehistoricos”. Sendo assim, estaria fora do alcance da política humana. A ciência legitimaria, portanto, uma ordem social naturalizada.

E quanto ao feminismo nascente? Para esse leitor, possivelmente urbano, alfabetizado, pertencente às camadas que consumiam jornais, a luta dos sexos apareceria sob a forma de uma inquietação moderada: perigosa se levada ao extremo, tolerável se mantida dentro de fronteiras. O mesmo vale para a noção de “multidões”, tão temida na virada do século — multidões que podiam se revoltar, incendiar, subverter a ordem, mas das quais um “publico” razoável e disperso deveria distinguir-se.

Finalmente, há o comentário sobre o “sucesso” da imprensa: ele próprio relativizado ao “gosto” do público, que poderia se inclinar a paixões “grosseiras”, da injúria à pornografia. Aqui vemos claramente a tensão moral do período — e também a preocupação de um jornalista que se quer ético, mas que reconhece que a sobrevivência do jornal depende, em parte, dos apelos mais baixos do mercado.

Em suma, é só um pequeno texto, eu sei. Mas que rica janela ele nos abre para a cultura letrada da época! Por ele, podemos aferir o grau da crença no progresso científico em face de um conservadorismo travestido de equilíbrio. Ele também nos dá a ver a moral sexual e social de então, inseparável dos temores que atravessavam a virada do século.

Fontes primárias, sim. Gosto delas.

domingo, 26 de outubro de 2025

O Mito do Eterno Retorno

Pode-se também dizer que o cristianismo é a “religião” do homem moderno e do homem histórico — daquele que descobriu simultaneamente a liberdade pessoal e o tempo contínuo (em lugar do tempo cíclico). Também é interessante notar que a existência de Deus se impunha com muito maior urgência ao homem moderno — para quem a história existe como tal, como história e não como repetição — do que ao homem das culturas arcaicas e tradicionais, o qual, para se defender do terror da história, dispunha de todos os mitos, ritos e comportamentos mencionados ao longo deste livro. Além disso, ainda que a ideia de Deus e as experiências religiosas que ela implica existissem desde os tempos mais remotos, puderam às vezes ser substituídas por outras “formas” religiosas (totemismo, culto dos antepassados, grandes deusas da fecundidade etc.), que respondiam com mais prontidão às necessidades religiosas da humanidade “primitiva”. No horizonte dos arquétipos e da repetição, o terror da história, quando se manifestava, podia ser suportado. Desde a “invenção” da fé no sentido judaico-cristão do termo (isto é, a de que para Deus tudo é possível), o homem, afastado do horizonte dos arquétipos e da repetição, não pode defender-se desse terror senão por meio da ideia de Deus. Com efeito, somente pressupondo a existência de Deus, o homem conquista, por um lado, a liberdade (que lhe concede autonomia em um universo regido por leis — ou, em outros termos, a “inauguração” de um modo de ser novo e único no universo) e, por outro, a certeza de que as tragédias históricas possuem um significado trans-histórico, ainda que esse significado nem sempre seja evidente para a atual condição humana. Toda outra situação do homem moderno conduz, em última instância, ao desespero — um desespero provocado não por sua própria existencialidade humana, mas por sua presença em um universo histórico no qual a quase totalidade dos seres humanos vive atormentada por um terror contínuo (ainda que nem sempre consciente). Nesse aspecto, o cristianismo se afirma sem discussão como a religião do “homem caído em desgraça”: e isso na medida em que o homem moderno está irremediavelmente integrado à história e ao progresso — e em que a história e o progresso são quedas que implicam o abandono definitivo do paraíso dos arquétipos e da repetição.

Fonte: Eliade, M. (1951). Le mythe de l’éternel retour: Archétypes et répétitions (R. Anaya, Trad.). Edición digital: epublibre (EPL). Conversión a PDF: FS, 2020. Editor digital: Mandius. (Obra original publicada em 1949)

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Pode-se compreender, à luz do que diz Eliade, que o chamado “destino histórico” surge como o fio condutor dos povos modernos — uma forma de esperança projetada para o futuro. A história, entendida não mais como repetição. E veja-se que repetir não é jamais fatal, porque tudo volta a ser. Todavia,  a história, para o homem moderno, é irreversível e, pensada assim, torna-se um espaço onde se inscreve a promessa de redenção. Já não importa o presente imediato, porquanto ele deve justificar o amanhã promissor. Há um sentido final que a história parece assinar: individualmente, a salvação; coletivamente, a glória eterna. Sempre a esperança. Entre os antigos, o tempo mítico situava-se em sentido oposto. O paraíso, a Idade do Ouro, o nascimento do primeiro herói — tudo isso pertencia ao passado primordial, à origem luminosa que se buscava reatualizar pelos ritos e mitos. O cristianismo, ao contrário, desloca o eixo: o paraíso deixa de estar atrás de nós e passa a ser promessa, não lembrança. A esperança substitui a repetição; o futuro toma o lugar do mito. Assim, a “queda na história” que Eliade descreve é também a descoberta de um novo modo de ser — trágico e, ao mesmo tempo, fecundo. Pois é no tempo linear, sob o peso da ideia do progresso e diante da perda do eterno retorno, que o homem deve entrever a possibilidade de uma salvação pessoal e de uma redenção universal.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Sobre o Amor e a Luta dos Sexos

 

Reflexões de Wilhelm Stekel em "La Femme Frigide" (1949) 

 Wilhelm Stekel (1868-1940), médico austríaco, discípulo de Freud desde os primórdios do movimento psicanalítico, foi um dos pioneiros da psicanálise. Apesar disso, ele divergiu da ortodoxia freudiana e desenvolveu uma abordagem própria, direta e pragmática. Estudioso dos distúrbios sexuais e das neuroses, Stekel colocou a sexualidade na perspectiva clínica moderna. Em suas obras, combina a observação clínica com uma visão progressista tanto da sexualidade quanto das relações humanas. Suas ideias sobre amor livre, emancipação sexual e crítica às instituições matrimoniais tradicionais o colocaram na vanguarda do pensamento sexual de sua época.

 “A Mulher Frígida” é uma de suas obras mais conhecidas. Denso e volumoso, o livro traz casos clínicos e observações perspicazes. Há uma edição brasileira, mas, curiosamente, nela não se encontram as conclusões do autor, presentes da edição francesa de 1949. São conclusões e observações que merecem divulgação, visto que tratam, com extrema acurácia, seja da frigidez feminina, seja da dinâmica dos relacionamentos. A visão de Stekel é, paradoxalmente, pessimista e esperançosa das relações conjugais e humanas. Para ele, um casamento fundado no amor genuíno — aquele que oferece, em tese, as melhores perspectivas de felicidade e harmonia —, ao contrário do que comumente se acredita, não garante proteção absoluta em face do surgimento de novos sentimentos amorosos.

Como lidar com essa realidade, afinal, tão evidente? Como negar que nossos ideais românticos estejam expostos ao desgaste inevitável imposto pela passagem do tempo? Só os ideais infantis possuem uma qualidade quase indestrutível. Os ideais adultos são complexos que regem as relações maduras. Os anos passam rapidamente. A harmonia espiritual, que caracterizava os primeiros momentos da união, frequentemente se desfaz e dá lugar ao tédio. Um dos parceiros pode continuar desenvolvendo seus potenciais, enquanto o outro permanece estagnado. Uma situação nada incomum, aliás, e da qual resulta um desequilíbrio que corrói a base da relação. Além disso, há o instinto polígamo, o desejo de novidade, o progresso das paixões. Todos esses elementos representam jogos perigosos em qualquer união.

Contudo, não obstante tal cenário, Stekel reconhece que o casamento não se limita a uma comunhão erótica. Ele também é uma comunhão que inclui interesses econômicos e sociais. Ao lado do amor, pode desenvolver-se o sentimento não-erótico de amizade profunda, que talvez constitua o vínculo mais poderoso de uma união duradoura. O hábito, nesse cenário, se mostra como um poder peculiar. Ele forja e solidifica ligações. Assim, apesar dos novos amores que podem surgir, um estado de fidelidade também pode existir e até mesmo se fortalecer após breves períodos de infidelidade. Quando o amor antigo sobrevive a essas provações, ele pode experimentar uma intensificação. A harmonia conjugal torna-se, então, mais profunda e madura. Esta observação de Stekel é particularmente interessante, porque sugere que a fidelidade não é necessariamente estática. Ela pode corresponder a um processo dinâmico de redescoberta e renovação. A condição, naturalmente, é que ambos os parceiros tenham os mesmos direitos e a mesma liberdade de escolha. Todavia, quando o novo parceiro se revela mais compatível, quando um novo ideal desvaloriza o antigo, o casamento deve se dissolver, porque, sem amor, ele se torna imoral. Toda e qualquer forma de constrangimento e chantagem emocional são, aliás, igualmente imorais para Stekel. Essas reflexões levam, naturalmente, a que se questione a própria instituição do casamento monogâmico, embora ele represente, provavelmente, a única solução possível do problema social sexual.

Interessante também é a proposta de Stekel de um "casamento experimental" de quatro anos, uma ideia revolucionária para a época. As mulheres, contrariamente ao que se poderia esperar, são frequentemente as primeiras a se submeterem a julgamentos tradicionais sobre fidelidade, mesmo quando esses julgamentos as prejudicam. Uma das observações mais penetrantes feitas por Stekel se refere à natureza do adultério feminino. Para ele, na maioria dos casos, não se trata de uma necessidade sexual propriamente dita, mas de uma arma na luta dos sexos, uma forma de afirmar a personalidade feminina. Muitas mulheres traem seus maridos não por desejo, mas porque procuram no outro aquilo que não conseguem amar no marido, aquilo que as deixa emocionalmente frias na relação conjugal. Paradoxalmente, não é raro que o marido, por conta de um ciúme exagerado, provoque a infidelidade que tanto teme. Stekel observa que mulheres que simulam orgasmos para seus maridos consideram sua própria sexualidade como um defeito a ser vencido. Essas mulheres tentam dessexualizar completamente suas vidas. Com isso, elas excluem não só o prazer sexual, como ainda todas as funções sexuais saudáveis.

O medo do casamento ― que não é incomum ― muitas vezes reflete o terror de ser obrigado a sacrificar a própria personalidade, para abandonar-se completamente ao outro. Stekel identifica aí uma curiosa contradição: este é, precisamente, o objetivo secreto de alguns indivíduos que desejam ardentemente se dissolver no eu amado. Essa dissolução, quando genuína, não é unilateral. Ela representa uma penetração mútua, na qual cada parceiro se sacrifica, sim, mas também, simultaneamente, ganha com isso. Isso é raro. Somente o fogo do verdadeiro amor que pode produzir tal fusão alquímica. E, quando a ligação se torna verdadeiramente indissolúvel, cada separação significa morte ou declínio para ambos os parceiros.

Questões sociais: a decadência das elites, o futuro da civilização e o mito do amor materno. Stekel estende suas reflexões a questões sociais mais amplas, observando como as camadas inferiores da sociedade ascendem, enquanto as superiores parecem incapazes de transmitir suas aquisições culturais. O trabalho de refinamento cultural, lamenta ele, estabeleceu-se apenas para o indivíduo isolado, não mais para a humanidade como um todo. Quando a aristocracia espiritual morre, o progresso humano se detém. A análise demográfica de Stekel é particularmente sombria: ele observa que os camponeses começam a conhecer e aplicar os princípios malthusianos de controle populacional, citando uma suposta oração dos pastores alemães: "Dai-nos vacas e bois, mas não nos dê crianças". As perspectivas para o futuro da Europa, conclui, são desanimadoras, pois "o amanhã pertence ao povo que tiver mulheres fecundas".

Uma das observações mais perturbadoras de Stekel refere-se ao declínio do instinto materno. Contrariamente à crença popular de que o amor materno é um instinto inato e inviolável, suas análises revelam que muitas mães neuróticas carecem completamente desse sentimento, que às vezes se transforma em ódio terrível. Ele observa que o amor materno exagerado frequentemente é suspeito, podendo representar a compensação de uma deplorável carência emocional. São mães que oscilam entre os extremos de uma superproteção ansiosa e da rejeição hostil, criando condições neuróticas em seus filhos. A correlação entre a felicidade conjugal e o amor materno é particularmente reveladora: mães que são infelizes em seus casamentos frequentemente transferem essa infelicidade para suas crianças. Elas detestam os filhos, ou porque não amam o pai, ou porque as crianças representam as correntes que as prendem a um casamento sem amor.

A questão das crianças não desejadas preocupa profundamente Stekel. Ele observa que muitas nascem contra a vontade de seus pais e questiona-se se é surpreendente que essas mães acabem detestando seus filhos. A impressão eterna que uma criança recebe do desejo de destruição materno ― "um ódio inculcado com o sangue materno" ― produz uma aversão fundamental contra a vida. Há também conexões inquietantes entre crianças ilegítimas e comportamentos antissociais, sugerindo que a maioria dos criminosos e anarquistas são produtos de gestações indesejadas. Essa observação, embora controversa, aponta para a importância fundamental do desejo parental na formação da personalidade.

Dilemas da emancipação feminina. A análise de Stekel sobre a emancipação feminina é complexa e, por vezes, contraditória. Ele observa que a mulher moderna se encontra dividida entre ser mulher, ser mãe ou ser amante, como se essas identidades fossem mutuamente excludentes. A mulher que se recusa à profissão materna, sem uma obrigação ética ou social, se subtrai da natureza feminina tanto quanto a amante frígida. Esta reflexão leva Stekel a compreender o fenômeno das mulheres desumanas, que formam batalhões de amazonas ou mães patriotas que enviam seus filhos para a guerra. As verdadeiras mães, argumenta ele, são sempre antimilitaristas, recusando-se a ser máquinas de fazer filhos, para produzir soldados para o Estado. A guerra, aliás, não é apenas um fenômeno político. Toda guerra é sintoma de uma infelicidade coletiva. Na medida em que a liberdade pessoal é suprimida, a compensação se produz violentamente sob a forma de impulsos destrutivos. A guerra aumenta automaticamente todos os vícios: glutonaria, inveja, orgias, cupidez, avidez por prazeres bestiais. Paradoxalmente, ela aumenta também a liberdade sexual, como se observou na Rússia pré-revolucionária, quando a juventude se desviou pelo niilismo, abandonando-se ao amor livre sem restrições e criando assim uma verdadeira epidemia que se apoderou da intelligentsia jovem.

O amor como resposta. A solução proposta por Stekel é radical em sua simplicidade: o direito sexual do indivíduo deve ser reconhecido. O direito ao amor, à felicidade e ao gozo sexual deve ser concedido ao indivíduo, que deve ter o direito de dispor de seu corpo segundo seu desejo, sem prestar contas à moral pública. Contudo, Stekel faz uma distinção crucial: "tenho grande respeito pela santidade do amor para dar esse nome a qualquer desejo sexual". Os homens perderam sua capacidade de amar e encontrar o amor verdadeiro. Se houvesse apenas verdadeiros amantes, não haveria problemas de frigidez nem neuróticos.

Stekel reconhece que o casamento monogâmico, com ou sem sacerdote, reconhecido ou não pelo Estado, será sempre a única possibilidade viável. O problema é complexo, mas cada parte deve ser livre para deixar essa comunhão sem processos e sem explicações detalhadas. Qualquer constrangimento se torna origem de uma reação secreta que tende a subverter aquilo que se pretende proteger. Não se deve entender por amor livre uma vida sexual sem limites nem restrições. Stekel considera o verdadeiro amor como uma obrigação de fidelidade, argumentando que é sempre monógamo e constitui a única proteção real contra a infidelidade.

O problema da fidelidade, por sua vez, é mais complexo do que parece. A disposição polígama humana torna difícil a monogamia mesmo para aqueles que amam verdadeiramente. Contudo, os pequenos afastamentos não deveriam ser considerados trágicos. Um verdadeiro amor liga psíquica e fisicamente dois seres, e sobrevive a todos os perigos, produzindo compreensão mútua e perdão. Para alcançar este ideal, o indivíduo deve ter possibilidade de escolha. Deve, às vezes, passar por todos os estados do amor para encontrar seu ser complementar. O ser humano é, fundamentalmente, um buscador do amor. Ele não é feliz, a não ser que encontre seu amor específico: não o amor em geral, mas o seu amor particular.

A Religião da alegria de viver. Stekel encerra suas conclusões expondo uma visão quase mística. Ele acredita que a humanidade necessita de uma nova religião: a religião da alegria de viver. O amor livre fixará o indivíduo ao seu parceiro muito mais profundamente do que o amor obrigatório jamais conseguiu. Se não puder realizar-se plenamente, o amor morrerá, e toda ligação sem amor é imoral para seres nobres. Citando uma antiga verdade budista, Stekel encerra suas reflexões: "Assim, o comum existe e o nobre existe também; mas há uma liberdade que é superior a toda percepção dos sentidos". Esta liberdade superior não é licenciosidade, mas a capacidade de amar genuinamente, sem constrangimentos externos, criando vínculos que são ao mesmo tempo mais livres e mais profundos do que qualquer imposição social poderia produzir.

Considerações Finais. As reflexões de Stekel sobre amor, sexualidade e sociedade, embora datadas em alguns aspectos, são reveladoras. Sua análise da frigidez feminina como sintoma de questões sociais mais amplas, sua crítica às instituições que constrangem o amor genuíno e sua visão acerca do verdadeiro amor como uma força transformadora permanecem como aspectos capitais nas discussões contemporâneas sobre relacionamentos, sobre autonomia sexual e sobre realização pessoal. Sua compreensão de que a luta dos sexos reflete desequilíbrios sociais mais profundos, bem como sua intuição de que apenas o amor genuíno pode transcender essas lutas, oferece uma perspectiva única sobre os dilemas eternos da condição humana. Ao final, Stekel nos entrega uma verdade simultaneamente simples e complexa: onde o coração e o corpo encontram seu complemento, a luta está terminada. Seres interiormente livres jamais são neuróticos, porque vivem seus conflitos sem dissimulação. Eles conhecem assim uma liberdade superior, que transcende tanto a repressão quanto a libertinagem. Eles descobrem, enfim, a liberdade de amar verdadeiramente.