IV. O sentimento de angústia
Estudaremos agora a terceira série de sentimentos dos
quais faremos o resumo, o sentimento de angústia, que é muito importante do
ponto de vista social.
Frequentemente tenta-se dar desse sentimento uma
definição colocando-o do ponto de vista da consciência, mas este é um trabalho
bem difícil. Têm sido propostas expressões como “medo moral”, “dor moral”. Eia
aí simples metáforas exprimindo unicamente a ideia de um afastamento do homem
diante do mundo exterior.
É preciso, de fato, colocar-se de outro ponto de vista
e, segundo nosso método, começar por buscar as circunstâncias nas quais nascem
esses sentimentos para, a seguir, fazer a sua análise.
Os sentimentos de angústia surgem sob dois grupos de
circunstâncias: os insucessos e as emoções.
A ação dos seres vivos consiste, como vimos, em
modificar o mundo exterior, modificações que encontram um estimulante nas
manifestações desse mundo exterior. Mas quando a ação se consuma, pode-se perguntar
se ela teve êxito ou não, se ela suprimiu as manifestações dificultosas. Nos
casos ordinários, é um observador exterior que constata se ação foi ou não
exitosa; aqui, o observador somos nós mesmos: este é o ator que representa o
papel de observador, e o sentimento de sucesso ou de insucesso modifica a
própria ação.
Chamaremos ab-reação uma conduta que consegue
modificar o mundo exterior no sentido desejado.
A primeira fonte de angustia se encontra, pois, no
insucesso. Passemos agora à segunda fonte: as emoções. Dizemos, há alguns anos,
que não há propriamente como falar de ação em uma emoção. Na emoção,dizemos,
somos surpreendidos, mas nada fazemos, não agimos: a emoção se traduz pela
desordem, pelo desarranjo.
Na verdade,
depois da reflexão, podemos dizer que há também na emoção um sentimento de angústia, uma relação com a ação. Mas a
parcela de ação é reduzida.
Estabelecidas
as origens da angustia, podemos analisar esse sentimento do seguinte modo:
As
modificações devidas ao estado de angustia podem ser reduzidas a três tipos
principais: modificações viscerais, modificações intelectuais e modificações da
conduta ou da ação.
As
modificações viscerais, como para todos os fenômenos psicológicos, são
inumeráveis no organismo: modificações da circulação, da digestão, da
respiração, da secreção, um grande número dessas modificações viscerais foram
citadas no livro que publiquei em 1903 à propósito de obsessões.
Do
ponto de vista intelectual, constatam-se dois fenômenos postos. De uma parte a
inteligência se detém: o indivíduo se torna estúpido, nada mais compreende.
Essa parada da inteligência, ora localizada, ora geral, se traduz
frequentemente por um retorno a antigos defeitos de pronúncia tais como sotaque
ou traços vulgares e também por certas perdas de memória. D’outra parte,
constata-se igualmente certa excitação da inteligência.
Da
mesma forma, do ponto de vista das modificações da conduta, constata-se ora uma
supressão da ação, como nos fenômenos de timidez, uma supressão da marcha, ora
certa agitação que se traduz por acontecimentos, uma necessidade de mexer-se,
de gritar, de gesticular, de “quebrar tudo”.
A
coexistência, desta diminuição da ação e desta excitação, da inibição e da
agitação desordenada, produz dificuldades e diversidades nas teorias da
angústia que têm sido apresentadas e que devemos agora passar e revista.
As
diferentes teorias da angustia se distinguem pela escolha de um fenômeno como
essencial: sejam as manifestações viscerais, seja aquela da inteligência, sejam
aquelas da ação e da conduta.
As
teorias viscerais são muito antigas: elas datam de Descartes e de Malebranche
que declaram que a paixão é o contragolpe corporal de fenômenos espirituais.
Em
1860, por Claude Bernard, e em 1884, por Willian James, essas tórias são
questionadas e resumidas por esta frase característica de W. James: “sorry
because we cry, nós somos tristes porque choramos”.
Tais
teorias estão ultrapassadas no momento. Primeiro, porque repousam sobre um
círculo vicioso. Se retirarmos da emoção os fenômenos viscerais, diz W. James,
não sobra nada. Mas quem admitiu esse postulado de que se constatam apenas
fenômenos viscerais? É bem possível que existam outros fenômenos além destes
últimos, e então não haveria nenhuma razão a priori para rejeitar certos
fenômenos de preferência a outros; e, de fato, há uma imensidade de fenômenos
que intervêm na angústia.
Mas
a principal razão do fracasso dessas teorias viscerais não está nisso, mas no
fato de que esses fenômenos são extremamente banais e quase os mesmos para
todos os sentimentos. A propósito disso há um estudo feito em 1905 pelo
italiano Montabelli. Esse autor quis estudar os sentimentos opostos como o amor
e o ódio, o medo e a coragem, etc. Ele montou vários quadros de modificações orgânicas
constatadas nos dois sentimentos opostos: a comparação desses quadros não
mostra nenhum antagonismo. Ela mostra, ao contrário, que, para todos os
sentimentos, as modificações viscerais são quase as mesmas.
Enfim,
esta teoria resulta de um erro frequente de método que consiste em passar de um
fenômeno infinitamente complexo a um fenômeno absolutamente simples, no caso presente,
de um sentimento à uma modificação fisiológica, e que me lembra a seguinte
resposta de um candidato a quem lhe perguntasse o que era sulfato de sódio, a
que ele respondia: “É um composto de átomos”.
As
teorias intelectuais tentam explicar a angustia pela inteligência; mas a
inteligência se manifesta na linguagem, e a linguagem, ela mesma, não é senão a
reprodução da ação. De sorte que as teorias da inteligência são intermediárias
que se encaminham na direção das teorias da ação.
As
teorias da ação foram inauguradas pela escola de Chicago que analisou os
fenômenos psicológicos desse ponto de vista. Esta escola mostrou notadamente
que na emoção havia mais ação do que se acreditava, ações que se manifestam em
certas tentativas de fuga e por golpes de punho e movimentos de maxilares.
Mas
a escola de Chicago não observa senão fragmentos da ação. É preciso
perguntar-se agora se existe aí verdadeiramente uma conduta particular, nítida
e especial, característica da angústia.
Minha
resposta será que, no momento em que existe um sentimento novo, há forçosamente
uma conduta especial. Nós a chamaremos de “conduta de fracasso”, e podemos
constatar que um fracasso sem conduta de fracasso é um fracasso sem angústia.
Assim o pássaro que, partindo à procura de um lugar para o seu ninho, cai
ferido pela bala de um caçador, não sente angustia, porque, atingido
subitamente e sem sabê-lo, não pode ele organizar uma conduta de fracasso. Em
uma primeira aproximação, podemos caracterizar essa conduta de fracasso pela
expressão “medo da ação”: as angustias descrevem sempre coisas assustadoras
onde intervêm ideias de perigo, de morte, de sacrilégio, de crime. Mas se a
expressão “medo de um objeto” corresponde bem a algo preciso, a saber a fuga, a
que corresponde a expressão “medo da ação”?
Faremos
aqui a observação de que, sob o domínio do sentimento de angustia, o indivíduo
tem constantemente condutas opostas, seja uma com a outra, seja a seus
princípios,seja a seus motivos diretores. É isso o que chamaremos de o fenômeno
de condutas inversas.
Isso
se explica facilmente. Os fenômenos contraditórios estão sempre associados. Do
mesmo modo que fisiologicamente os movimentos do lado direito estão associados
àqueles do lado esquerdo, que os movimentos de flexão e de extensão são ligados
por músculos antagonistas, o mesmo com nossas ideias: não podemos desejar uma
coisa sem ter a ideia da restrição contrária (por exemplo a ideia de comer sem
a ideia de não comer). A passagem de uma à outra se faz muito simplesmente pelo
medo da ação: ter medo da ação é fazer outra coisa, é afastar-se, é muito
facilmente passar ao extremo oposto. Mas como se produz essa ação inversa? Não
há outra resposta senão que a parada da ação. Não é bom continuar sem cessar um
esforço sem resultados: a parada é a descoberta da inutilidade da ação, é a
reação ao fracasso. Não é a parada parcial da fadiga; é a parada completa,
definitiva, que suprime radicalmente o desejo.
Detêm-se
assim as forças mobilizadas que será preciso empregar em outro objetivo. Será
preciso inventar outras ações, e isso em más circunstâncias. É algo bem
difícil. Haverá como resultado dessas forças não empregadas, numerosas
desordens viscerais e intelectuais.
Reta
um último problema. Como relacionar a esta explicação de angústia a emoção,
pois que o fracasso supõe uma multidão de ações prévias.
A
resposta é que a emoção é uma reação antecipada. Se colocarmos nas mãos de um
indivíduo uma grande bola, depois uma pequena bola, ambas de mesmo peso, o
homem declara sempre que a maior é a mais leve. É uma reação antecipada. Ele
sabe que não deve concluir que ela é mais pesada porque é maior, e cai no
excesso contrário. Do mesmo modo, a emoção é uma reação antecipada que se
produz antes dos motivos que são imaginados de antemão. Na realidade, a reação
de fracasso deveria ocorrer após o insucesso do esforço; os espíritos emotivos
se enganam. Eles reagem mais cedo. A emotividade é, pois, um hábito moral de
reagir ao fracasso muito cedo, porque nos julgamos muito fracos diante da
dificuldade da ação. A emoção é também e, sobretudo, uma reação grosseira,
elementar, que suprime as condutas superiores e que reduz o espírito às
condutas mais primitivas, mesmo às simples condutas convulsivas.
Tradução da parte IV do capítulo I : Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la
haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.
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