quinta-feira, 19 de abril de 2018

Janet e o sentimento de Angústia



Capítulo I – Os sentimentos fundamentais
IV. O sentimento de angústia
Estudaremos agora a terceira série de sentimentos dos quais faremos o resumo, o sentimento de angústia, que é muito importante do ponto de vista social.
Frequentemente tenta-se dar desse sentimento uma definição colocando-o do ponto de vista da consciência, mas este é um trabalho bem difícil. Têm sido propostas expressões como “medo moral”, “dor moral”. Eia aí simples metáforas exprimindo unicamente a ideia de um afastamento do homem diante do mundo exterior.
É preciso, de fato, colocar-se de outro ponto de vista e, segundo nosso método, começar por buscar as circunstâncias nas quais nascem esses sentimentos para, a seguir, fazer a sua análise.
Os sentimentos de angústia surgem sob dois grupos de circunstâncias: os insucessos e as emoções.
A ação dos seres vivos consiste, como vimos, em modificar o mundo exterior, modificações que encontram um estimulante nas manifestações desse mundo exterior. Mas quando a ação se consuma, pode-se perguntar se ela teve êxito ou não, se ela suprimiu as manifestações dificultosas. Nos casos ordinários, é um observador exterior que constata se ação foi ou não exitosa; aqui, o observador somos nós mesmos: este é o ator que representa o papel de observador, e o sentimento de sucesso ou de insucesso modifica a própria ação.
Chamaremos ab-reação uma conduta que consegue modificar o mundo exterior no sentido desejado.
A primeira fonte de angustia se encontra, pois, no insucesso. Passemos agora à segunda fonte: as emoções. Dizemos, há alguns anos, que não há propriamente como falar de ação em uma emoção. Na emoção,dizemos, somos surpreendidos, mas nada fazemos, não agimos: a emoção se traduz pela desordem, pelo desarranjo.
Na verdade, depois da reflexão, podemos dizer que há também na emoção um sentimento de angústia, uma relação com a ação. Mas a parcela de ação é reduzida.
Estabelecidas as origens da angustia, podemos analisar esse sentimento do seguinte modo:
As modificações devidas ao estado de angustia podem ser reduzidas a três tipos principais: modificações viscerais, modificações intelectuais e modificações da conduta ou da ação.
As modificações viscerais, como para todos os fenômenos psicológicos, são inumeráveis no organismo: modificações da circulação, da digestão, da respiração, da secreção, um grande número dessas modificações viscerais foram citadas no livro que publiquei em 1903 à propósito de obsessões.
Do ponto de vista intelectual, constatam-se dois fenômenos postos. De uma parte a inteligência se detém: o indivíduo se torna estúpido, nada mais compreende. Essa parada da inteligência, ora localizada, ora geral, se traduz frequentemente por um retorno a antigos defeitos de pronúncia tais como sotaque ou traços vulgares e também por certas perdas de memória. D’outra parte, constata-se igualmente certa excitação da inteligência.
Da mesma forma, do ponto de vista das modificações da conduta, constata-se ora uma supressão da ação, como nos fenômenos de timidez, uma supressão da marcha, ora certa agitação que se traduz por acontecimentos, uma necessidade de mexer-se, de gritar, de gesticular, de “quebrar tudo”.
A coexistência, desta diminuição da ação e desta excitação, da inibição e da agitação desordenada, produz dificuldades e diversidades nas teorias da angústia que têm sido apresentadas e que devemos agora passar e revista.
As diferentes teorias da angustia se distinguem pela escolha de um fenômeno como essencial: sejam as manifestações viscerais, seja aquela da inteligência, sejam aquelas da ação e da conduta.
As teorias viscerais são muito antigas: elas datam de Descartes e de Malebranche que declaram que a paixão é o contragolpe corporal de fenômenos espirituais.
Em 1860, por Claude Bernard, e em 1884, por Willian James, essas tórias são questionadas e resumidas por esta frase característica de W. James: “sorry because we cry, nós somos tristes porque choramos”.
Tais teorias estão ultrapassadas no momento. Primeiro, porque repousam sobre um círculo vicioso. Se retirarmos da emoção os fenômenos viscerais, diz W. James, não sobra nada. Mas quem admitiu esse postulado de que se constatam apenas fenômenos viscerais? É bem possível que existam outros fenômenos além destes últimos, e então não haveria nenhuma razão a priori para rejeitar certos fenômenos de preferência a outros; e, de fato, há uma imensidade de fenômenos que intervêm na angústia.
Mas a principal razão do fracasso dessas teorias viscerais não está nisso, mas no fato de que esses fenômenos são extremamente banais e quase os mesmos para todos os sentimentos. A propósito disso há um estudo feito em 1905 pelo italiano Montabelli. Esse autor quis estudar os sentimentos opostos como o amor e o ódio, o medo e a coragem, etc. Ele montou vários quadros de modificações orgânicas constatadas nos dois sentimentos opostos: a comparação desses quadros não mostra nenhum antagonismo. Ela mostra, ao contrário, que, para todos os sentimentos, as modificações viscerais são quase as mesmas.
Enfim, esta teoria resulta de um erro frequente de método que consiste em passar de um fenômeno infinitamente complexo a um fenômeno absolutamente simples, no caso presente, de um sentimento à uma modificação fisiológica, e que me lembra a seguinte resposta de um candidato a quem lhe perguntasse o que era sulfato de sódio, a que ele respondia: “É um composto de átomos”.
As teorias intelectuais tentam explicar a angustia pela inteligência; mas a inteligência se manifesta na linguagem, e a linguagem, ela mesma, não é senão a reprodução da ação. De sorte que as teorias da inteligência são intermediárias que se encaminham na direção das teorias da ação.
As teorias da ação foram inauguradas pela escola de Chicago que analisou os fenômenos psicológicos desse ponto de vista. Esta escola mostrou notadamente que na emoção havia mais ação do que se acreditava, ações que se manifestam em certas tentativas de fuga e por golpes de punho e movimentos de maxilares.
Mas a escola de Chicago não observa senão fragmentos da ação. É preciso perguntar-se agora se existe aí verdadeiramente uma conduta particular, nítida e especial, característica da angústia.
Minha resposta será que, no momento em que existe um sentimento novo, há forçosamente uma conduta especial. Nós a chamaremos de “conduta de fracasso”, e podemos constatar que um fracasso sem conduta de fracasso é um fracasso sem angústia. Assim o pássaro que, partindo à procura de um lugar para o seu ninho, cai ferido pela bala de um caçador, não sente angustia, porque, atingido subitamente e sem sabê-lo, não pode ele organizar uma conduta de fracasso. Em uma primeira aproximação, podemos caracterizar essa conduta de fracasso pela expressão “medo da ação”: as angustias descrevem sempre coisas assustadoras onde intervêm ideias de perigo, de morte, de sacrilégio, de crime. Mas se a expressão “medo de um objeto” corresponde bem a algo preciso, a saber a fuga, a que corresponde a expressão “medo da ação”?
Faremos aqui a observação de que, sob o domínio do sentimento de angustia, o indivíduo tem constantemente condutas opostas, seja uma com a outra, seja a seus princípios,seja a seus motivos diretores. É isso o que chamaremos de o fenômeno de condutas inversas.
Isso se explica facilmente. Os fenômenos contraditórios estão sempre associados. Do mesmo modo que fisiologicamente os movimentos do lado direito estão associados àqueles do lado esquerdo, que os movimentos de flexão e de extensão são ligados por músculos antagonistas, o mesmo com nossas ideias: não podemos desejar uma coisa sem ter a ideia da restrição contrária (por exemplo a ideia de comer sem a ideia de não comer). A passagem de uma à outra se faz muito simplesmente pelo medo da ação: ter medo da ação é fazer outra coisa, é afastar-se, é muito facilmente passar ao extremo oposto. Mas como se produz essa ação inversa? Não há outra resposta senão que a parada da ação. Não é bom continuar sem cessar um esforço sem resultados: a parada é a descoberta da inutilidade da ação, é a reação ao fracasso. Não é a parada parcial da fadiga; é a parada completa, definitiva, que suprime radicalmente o desejo.
Detêm-se assim as forças mobilizadas que será preciso empregar em outro objetivo. Será preciso inventar outras ações, e isso em más circunstâncias. É algo bem difícil. Haverá como resultado dessas forças não empregadas, numerosas desordens viscerais e intelectuais.
Reta um último problema. Como relacionar a esta explicação de angústia a emoção, pois que o fracasso supõe uma multidão de ações prévias.
A resposta é que a emoção é uma reação antecipada. Se colocarmos nas mãos de um indivíduo uma grande bola, depois uma pequena bola, ambas de mesmo peso, o homem declara sempre que a maior é a mais leve. É uma reação antecipada. Ele sabe que não deve concluir que ela é mais pesada porque é maior, e cai no excesso contrário. Do mesmo modo, a emoção é uma reação antecipada que se produz antes dos motivos que são imaginados de antemão. Na realidade, a reação de fracasso deveria ocorrer após o insucesso do esforço; os espíritos emotivos se enganam. Eles reagem mais cedo. A emotividade é, pois, um hábito moral de reagir ao fracasso muito cedo, porque nos julgamos muito fracos diante da dificuldade da ação. A emoção é também e, sobretudo, uma reação grosseira, elementar, que suprime as condutas superiores e que reduz o espírito às condutas mais primitivas, mesmo às simples condutas convulsivas.

Tradução da parte IV do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.


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