segunda-feira, 28 de março de 2016

Lidando com arquivos pessoais

Em “As palavras e as coisas”, Foucault (1966, p.7) conta que esse seu livro nasceu de um texto de Borges que faz alusão a uma estranha taxonomia revelada “por certa enciclopédia chinesa”. Dentre as categorias elencadas, a divisão dos animais compreenderia, ― além dos incluídos naquela mesma classificação da qual se trata ―, grupos tais como os pertencentes ao imperador, os embalsamados, os domésticos, os leitões, as sereias, os fabulosos, o cães em liberdade, os que agem como loucos, os que de longe se parecem a moscas e até mesmo os desenhados com pelo de camelo muito fino. São rubricas singulares, sob as quais se inscreveriam impossibilidades repentinamente tornadas possíveis em razão de sua nomeação. A monstruosidade ali apontada ― diz o autor ― em nada altera o bestiário da imaginação. A questão diz mais com a ruína do espaço comum. A impossibilidade não estaria na vizinhança das coisas, mas no próprio lugar onde elas se avizinham.  É desta relação entre conteúdo e continente que resulta a incômoda ― não obstante cômica ― incongruência, típica das utopias, dos não lugares e talvez ― dir-se-ia ― de uma silenciosa não história. Quando se tem um encontro, — não raramente fortuito,  imprevisto —, com o arquivo de alguém, especialmente quando esse alguém não é ninguém em especial, é possível perceber todo um leque de possibilidades, toda uma gama de potencias surpresas. De certo modo, tudo ali nos sugere que se pode estar em face de algum segredo.

FOUCAULT, Michel. Le mot et les choses. Uma archéologie des sciences humaines. Paris : Gallimard, 1966.

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