domingo, 11 de agosto de 2019

Cultura Material


Ressaltando a importância da materialidade dos artefatos do passado, Bezerra de Meneses (1983) define três posturas comumente adotadas pelos historiadores dedicados à Antiguidade. 
A primeira se traduziria pela marginalização da cultura material, que seria ignorada e como que abstraída do universo físico. Nem mesmo Jean-Pierre Vernant, — historiador francês da Grécia Antiga, que aprofundou, entre outros temas, a mitologia — teria fugido a isso, ao desconsiderar matrizes visuais[1], fundamentais no universo das imagens, porque permitiriam o enriquecimento da análise a que se quer proceder, observa Meneses (1983, p. 104), o que pode ser explicitado in verbis:

Assim, no seu estudo do mito (aliás percuciente e, sob muitos aspectos, inovador e de muita densidade), ele utiliza apenas matéria prima literariamente processada; nunca levou em consideração, por exemplo, a possibilidade de matrizes visuais para as narrações míticas . Mesmo num estudo sobre, precisamente, o "nascimento das imagens", o autor reduz a vastíssima problemática das "phantasiai", aparições, aparências, "eidola", imitação e outras categorias, às imagens mentais, com prejuízo para uma análise ainda mais rica (MENESES, 1983, p. 104).

A segunda postura, que considera a mais frequente, consistiria na instrumentalização da informação de matriz arqueológica, vista como complementar à documentação textual. 
A terceira postura seria pautada no uso didático das informações inerentes ao universo material, assinando-lhe o papel de ilustrar o discurso do historiador. Esta última variante, todavia, comportaria resultados positivos sempre que fossem evidenciadas relações de equivalência entre a produção literária e a produção artística. Na cultura material reside um potencial imenso de informações não verbais, mas, nem por isso, menos eloquentes no que concerne aos padrões que podem revelar, porque “a cultura material constitui um código próprio, a ser descriptado (sic) segundo sua natureza e não por redução aos códigos verbais” (1983, p. 117), de sorte que, apesar dos desafios e das perguntas que permanecerão sempre sem respostas, deve-se ao menos procurar correlacionar ao máximo aspectos pertinentes a uma mesma cultura, que é simultaneamente material e não material, não se podendo excluir nenhum desses dois aspectos sem  prejuízo de uma melhor compreensão.

ENTREVISTA com Jean-Pierre Vernant, O Estado de São Paulo – Caderno 2 – 05 ago 2001.
MENESES, U. T. B. de. A Cultura Material no estudo das civilizações antigas. Revista de História (115): 103-117, 1983. 
Imagem: Hades abducting Persephone, wall painting in the small royal tomb at Verghina (Vergina), Macedonia. Fonte: Wikimedia Commons



[1] Jean-Pierre Vernant, a propósito, além de historiador, é referido como antropólogo.  Por ocasião da Entrevista (2001) que concedeu ao jornal O Estado de São Paulo, foi apresentado aos leitores como “o maior helenista vivo”. Nascido em 1914, Vernant é militante político e foi membro ativo da Resistência francesa. Vários de seus livros foram traduzidos para o português. Questionado pelo jornal sobre se concordava com a fórmula comumente sintetizada na expressão “o milagre grego”, Vernant manifesta sua absoluta discordância dessa ideia, que considera a Grécia como berço da razão, do pensar científico e mesmo da filosofia, bem como de outros grandes valores universais. Para Vernant, houve uma série de fenômenos complexos, de natureza cultural e política, ocorridos na passagem da oralidade à escrita, ou seja, da palavra profética, como ainda poética, de Homero e Hesíodo até o discurso lógico de Platão. Simultaneamente a essa passagem, ocorreram fenômenos sociais aí implicados: sucessivas passagens do poder da realeza e dos grupos aristocráticos até a organização da pólis, com a emergência da cidade e da cidadania. O triunfo do logos, na era clássica, não é considerado por Vernant como favorável aos gregos. Sua civilização não seria miraculosa, e os gregos teriam se mantido distantes da realidade física grega, longe da experimentação e da aplicação do cálculo ao real concreto.
Com isso fica claro o ponto de discordância que Meneses enfatiza em seu artigo, quando afirma a abstração do universo físico na obra de Vernant, que teria desconsiderado a importância das matrizes visuais nas narrativas míticas, reduzindo a problemática do nascimento das imagens em prejuízo de uma análise mais rica. Meneses é bastante categórico nesse sentido, quando observa que autores de máxima importância, dentre os quais inclui Jean-Pierre Vernant “por vezes tanto ignoram a realidade física, que descarnam os gregos antigos, quase os transformando em zumbis, que se alimentam de puras estruturas mentais, as quais, por sua vez, dão ser à realidade social, sempre algo estática” (MENESES, 1983, p. 104).


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