sábado, 31 de março de 2018

Janet e o sentimento do esforço



Capítulo I – Os sentimentos fundamentais 
II. O sentimento do esforço
Permitam-me relembrar uma comparação que fazemos frequentemente, entre um ser vivente e um automóvel. O automóvel compõe-se de dois mecanismos:
1º Um mecanismo motor, necessário, fundamental; mas que, sozinho, é inutilizável.
2º Um mecanismo acessório relacionado a quatro funções principais: aceleração, freio, ré, parada. Tais são os aparelhos que permitem usar utilmente e praticamente o automóvel. Se a parada for definitiva, ela é acompanhada da descarga do mecanismo.
No ser vivo, existem quatro regulagens principais: o sentimento do esforço, correspondendo à aceleração, o sentimento da fadiga correspondendo à frenagem, o sentimento de sofrimento ou de angustia correspondendo à ré, enfim, o sentimento do gozo que corresponde à parada com descarga. Esses sentimentos desempenham um grande papel na vida social e, por conseguinte, nas condutas sociais daí resultantes.
O esforço é um sentimento que muito tem preocupado os psicólogos a partir do século VXIII, notadamente Régis, Cabanis e, sobretudo, Maine de Biran, o filósofo do esforço. Maine de Biran apresenta o esforço de um ponto de vista metafísico que se explica mal porque, em realidade, o esforço é uma ação como as outras, tão misteriosa quanto as outras, mas não mais.
Confunde-se frequentemente o esforço com a reação elementar do sentido muscular ou cinestésico. Mas o esforço é mais do que esta reação: o sentido cinestésico é uma regulação de atitudes parciais, enquanto o esforço é uma aceleração que diz respeito a todas as ações, uma regulação de conjunto.
O esforço propriamente dito se relaciona a uma multiplicidade de questões. O sentimento do interesse, primeiramente, interesse por coisas numerosas ou coisas isoladas. Depois a atenção, interesse particular que detém a ação mais do que a ativa. Depois o desejo, fenômeno muito mal explicado, onde há uma parte de esforço, de trabalho para obter alguma coisa e que pode chegar até a paixão, esforço violento na direção de algo que se opõe à inércia e à melancolia. Enfim, o fenômeno do trabalho, que cria diferenças consideráveis entre os homens, é uma forma de esforço, um interesse que criamos por objetos que não se têm. Em uma palavra, o esforço relacionando-se a todas as condutas de aceleração.
Que é, pois, esse sentimento do esforço? Um sentimento se define dificilmente, sobretudo quando tomado isoladamente. Nós podemos opor o esforço ao sentimento de vazio: o sentimento de vazio exclui o interesse, leva à indiferença; o esforço seria, de preferência, o sentimento de plenitude. Os caracteres do esforço, com efeito, são exatamente os opostos aos caracteres do vazio. O esforço cria o sentimento da realidade, da vida, do acontecer que é dele o objetivo. O esforço cria o presente e dá ao passado um caráter particular: as lembranças tornando-se reais, às vezes mesmo muito reais, sob a influência do esforço. Elas podem se transformar, por exemplo, em alucinações. O esforço se opõe, pois, ao sentimento de vazio. Por que se pode defini-lo?
Bain quis caracterizar o esforço pelo sofrimento, pelo caráter penoso que ele confere à ação. Isso não é exato: o esforço e o sofrimento podem se combinar; mas há esforços sem sofrimento, e o sofrimento pode não estar acompanhado de esforços. Da mesma forma, o esforço não é o gozo: ele caminha na direção do gozo, mas com este não se confunde.
Não encontramos, até aqui, para caracterizar o esforço, senão caracteres negativos. Tratemos, pois, de definir a ação correspondente ao esforço, aquilo que se pode chamar de a conduta do esforço, e veremos aquilo que podemos concluir a respeito desse sentimento. Evitaremos assim a falta na qual cai a maioria dos filósofos que, a pretexto de que o esforço é um sentimento, não se ocupam das ações que o acompanham.
Há, com efeito, uma conduta do esforço, e o esforço enquanto sentimento não é senão que a consciência desta conduta.
De modo geral, uma conduta é um conjunto de ações. O que é então uma ação? Uma ação é um conjunto de movimentos que modificam alguma coisa no mundo exterior. Por exemplo, eu pratico a ação de comer uma maçã: modifiquei o mundo exterior, suprimi a maçã, comendo-a. Todas as nossas ações modificam, a cada instante, o mundo que nos cerca de modo imperceptível. Mas o esforço, o que ele modifica? Ele não modifica necessariamente o mundo exterior. Ele não é, pois, uma ação precisa, uma ação primária. E, todavia, não se faz um esforço por nada, sem objetivo e sem objeto. O esforço é uma ação secundária, sobrepondo-se à ação principal, do mesmo modo que a aceleração se superpõe à ação do motor. Uma ação poderosa pode, pois, se fazer sem esforço, enquanto um pequeno cão faz um esforço quando salta na direção de uma porção de açúcar que se lhe oferece. O esforço aumenta a ação. Ele não constitui por si mesmo uma ação especial. A ação alcança consequências conhecidas, determinadas: quando, por exemplo, corta-se uma maça em duas partes, sabe-se precisamente o que vai acontecer. Ao contrário, com o esforço, há uma parte de aleatório, de desconhecido, de dúvida quanto ao resultado que se vai obter. O esforço pode aperfeiçoar nossas ações. Ele é feito por nós: ele tem sua origem em nós, e sentimos que ele vem de nós. No esforço, poderemos, pois, agir para nos superarmos, para ampliar nossas ações primárias.
Eis naquilo que concerne aos caracteres exteriores do esforço. Agora é preciso indagar quanto ao que se passa em nós quando acrescentamos esforço a uma ação primária qualquer.
Uma primeira tese, dada por Maine de Biran, foi admitida sem objeções até 1850 aproximadamente. É uma tese, sobretudo, metafísica. Produz-se, de acordo com Maine de Biran, uma emissão de força nervosa que parte do cérebro para se deslocar até os músculos. O sentimento de energia despendida, o sentimento do escoamento da força, constituiria o esforço. Eis a tese que foi igualmente sustentada por Bain, Wundt e Charcot.
William James combate esta tese em 1880 e zomba polidamente dela. Que sentimento estranho e novo, diz ele, aquele do escoamento da força! Que sabemos nós sobre o que se passa em nossos nervos? E James discute de maneira interessante a observação anteriormente sinalada por Wundt. Diz-se a um hemiplégico que mova seu braço. Ele faz um esforço. Seu braço não se move minimamente e, todavia, diz-se, o hemiplégico sentiria seu braço mover-se? Não, responde James. O que o hemiplégico sente são as contrações musculares na parte não paralisada. Porque, ainda que incapaz de mover o braço hemiplégico, ele permanece capaz de uma quantidade de outros movimentos. James conclui que a consideração do esforço como um sentimento de origem central é uma complicação inútil.
Trabalhou-se intensamente então para estudar os movimentos periféricos no esforço: modificações na respiração (aspira-se fortemente sem expirar, para que o braço possa apoiar-se sobre a região torácica para agir vigorosamente), modificação cardíaca, etc. Todos esses estudos estão completamente fora de questão: as modificações viscerais se constatam em tudo, na alegria, na emoção, no medo, em todos os sentimentos, e elas são sempre muito próximas, mesmo nos sentimentos mais opostos, como nos mostram os trabalhos de Montanelli.
Tratemos, pois, de considerar a própria conduta do esforço, da aceleração, se preferirdes, e o mais claramente possível. Somos quase inevitavelmente levados, para defini-lo, a nos servirmos da expressão: aumento de forças psicológicas. Tem-se normalmente receio de empregar a palavra “forças”, porque ela lembra as antigas “faculdades” que saíram de moda. E depois, diz-se, essas forças psicológicas, não se sabe exatamente aquilo que elas são, não mais do que sabe o que é a eletricidade. Seja, mas fala-se bem sobre esta última sem saber exatamente o que ela é. Definamos, pois, a força psicológica, mas com prudência, ou seja, unicamente por seus efeitos[1].
Uma força é aquilo que é propenso a executar certo trabalho. Por exemplo, pode-se erguer um pequeno peso e pode-se erguer um grande peso; pode-se caminhar dez minutos, pode-se caminhar duas horas. Essas variações nos efeitos permitem determinar as quantidades de forças. Tal é a definição física. Diremos, do mesmo modo, que a força psicológica é aquilo que permite ao indivíduo executar uma ação com mais ou menos duração, mais ou menos repetições, mais ou menos potencia.
Conciliemos esta noção, aquela de carga de uma tendência. A carga de uma tendência é precisamente a força que pode dar às ações que ela tende a executar. Esta carga varia segundo as tendências. As tendências alimentares e sexuais são muito carregadas. O homem acometido de fome tudo faz para nutrir-se. As tendências sexuais são às vezes igualmente carregadas. Ao contrário, certas tendências, como, por exemplo, a tendência à leitura, são muito pouco desenvolvidas entre muitos indivíduos.
O esforço é um sentimento que se acrescenta, sobretudo, às tendências pouco carregadas: ele as estimula despertando outra tendência mais carregada. Lembrem-se do que vos disse ano passado sobre a drenagem das tendências: as tendências deixam-se drenar facilmente, de sorte que uma tendência pode drenar forças de outras tendências às vezes muito mais carregadas. Por exemplo, a personalidade é uma tendência vaga, mas carregada. É à personalidade que se relacionam as tendências à propriedade, à vaidade, ao respeito pelo homem. Essa tendência da personalidade se une, muitas vezes, às outras tendências: uma se observa incessantemente no esforço. Este é um dos caracteres importantes do fenômeno da aceleração.
Em suma, o esforço é uma regulação da ação primária pela adição de forças psicológicas. Esta adição se faz muito frequentemente ao despertar, para sustentar uma tendência fraca de uma tendência fortemente carregada e, notadamente, desta tendência geral que se resume na noção de personalidade.

Tradução da parte II do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.



[1]    Cf. nosso curso sobre La force et la faiblesse psychologiques, 1930.

1914

A Cigarra, São Paulo, 15 jul 1914, n. 6, ano I.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Sobre a fabricação do papel


Encontrei em Gustave Lebon (1884) interessantes referências sobre a fabricação do papel. Sabe-e que, na Idade Média, o suporte para escrita era o pergaminho, cujo custo elevado[1] fazia com que, frequentemente, os monges raspassem as obras dos grandes escritores gregos e romanos para sobre elas gravarem suas homilias. A difusão dos saberes reclamava, pois, a utilização de um substrato, análogo ao papiro egípcio, capaz de substituir o pergaminho, prestando assim um grande serviço à difusão dos saberes. Para Le Bon, os árabes foram os primeiros a fazerem essa substituição, o que se comprovaria pela descoberta, por Casiri, na biblioteca do Escorial[2], de um manuscrito árabe assentado sobre papel de algodão que remonta a 1009, anterior, portanto, a todos aqueles existentes nas bibliotecas da Europa. Reconstituindo o caminho histórico dessa invenção, Le Bon faz lembrar que os chineses, desde tempos imemoriais, dominavam a fabricação de papel a partir de casulos de seda, fabricação introduzida em Samarcanda[3] nos primeiros tempos da hégira e, quando os árabes se apoderaram dessa cidade, aí teriam encontrado uma fábrica já instalada. A utilização da preciosa descoberta, todavia, encontrava obstáculo na Europa, onde a seda era pouco ou quase desconhecida. A solução seria substituí-la por outra substância, o quer fora feito pelos árabes, que empregaram o algodão. Dever-se-ia também aos árabes a descoberta do papel de trapos, de difícil fabricação, exigindo numerosas manipulações, porque o emprego deste tipo de suporte entre os árabes é muito anterior ao uso que os povos cristãos fizeram dele. Afirma Le Bon que o documento considerado como o mais antigo manuscrito sobre papel existente na Europa é uma carta de Joinville a São Luiz escrita pouco antes da morte deste príncipe em 1270, ou seja, em época superior à sua primeira cruzada no Egito. Todavia, haveria manuscritos árabes sobre papel de trapos anteriores em mais de um século a este documento, notadamente um tratado de paz firmado entre Afonso II de Aragão e Afonso IV de Castilla, que data de 1178 e que se conserva nos arquivos de Barcelona. Sua origem será a celebra fábrica de papel de Xatiba, da qual o geógrafo Edrisi[4], que escreveu na primeira metade do século XII, fala com elogio.
Fonte : LE BON, Gustave. La civilisation des Arabes, Livre VI : La décadence de la civilisation arabe. Paris : Firmin-Didot, 1884. Édition réimprimée à Paris en 1980 par Le Sycomore, Éditeur, 1980.
Imagem: Fragmento de antigo tecido árabe de acordo com desenho do egiptólogo Prisse d'Avesne. 


[1] Lembro-me bem de ter ouvido em minhas aulas de paleografia medieval que seria necessário o couro de não menos de cem vacas para dar contas de uma bíblia.
[2] Real Biblioteca del Monasterio de San Lorenzo de El Escorial.
[3] Segunda maior cidade do Uzbequistão e capital da província de Samarcanda. A palavra significa "Forte de Pedra" ou "Cidade de Pedra" em sogdiano. Fonte : Wikipédia
[4] Abu Abdulá Maomé Idrissi (1099-1165), também conhecido como Idrissi, Xarife Idrissi ou simplesmente Edrisi ou Idris ou, ainda, pelo nome latino de Dreses, sendo também referido na literatura como o Árabe da Núbia,foi um geógrafocartógrafo e botânico árabe, famoso pela qualidade de seus mapas, tanto no desenho quanto na precisão. Fonte : Wikipédia

quinta-feira, 29 de março de 2018

O Corpo e o Espírito


"O Corpo e o Espírito não são duas naturezas distintas, mas uma só e mesma natureza considerada de dois pontos de vista diferentes; há, pois, entre a Fisiologia e a Filosofia do Espírito não uma diferença de objeto, mas uma diferença de método. Para o fisiologista, a inteligência não pode ser outra coisa senão que esta propriedade que possui todo corpo vivente de efetuar movimentos úteis à conservação da vida. Desse ponto de vista, a Memória é uma propriedade da célula vivente. O verdadeiro nome da Memória é adaptação. Para o filósofo, ao contrário, tudo o que existe é um modo de Pensamento. Ele não admite a Matéria mais do que o Fisiologista admite o espírito. O Psicólogo procura em vão estabelecer uma região intermediária para reunir fragmentos de ideais nos lobos cerebrais: não se pode falar duas linguagens simultaneamente, nem afirmar e negar ao mesmo tempo os mesmos princípios. Se a Psicologia quiser ser alguma coisa, que ela seja um capítulo da Fisiologia ou uma Filosofia do Espírito.
Também é preciso lembrar, nos estudos filosóficos, o grande número de espíritos bem dotados para a análise que se deixam inquietar pelo complexo aparelho dos laboratórios. Considerar o homem como uma máquina, a paixão como uma neurose e o crime como um reflexo nos conduz à indulgência para com os outros, o que é bom, mas nos leva também ao próprio abandono, o que é mau. Uma única ideia pode nos sustentar na luta contra nossos preconceitos, nossas paixões e nossos vícios: é a ideia de que o Espírito e a Natureza não se opõem; que o hábito pode combater o hábito; que o homem tem que lutar apenas contra seus erros passados, e que ele pode se transformar e se refazer a si mesmo além de todo limite por um esforço paciente e contínua vigilância sobre si mesmo. O corpo não é mais que uma muito antiga tradição, da qual o pensamento carrega o peso; é preciso compreender que não se trata de um peso morto, mas de um sistema vivo de ideias que todo novo pensamento e todo novo esforço modificam inteiramente. Certos disso, poderemos, ― enquanto outros procuram com ansiedade novos meios para satisfação de nossos desejos e a diminuição de nossos sofrimentos ―, nos esforçar para vencer uns e melhor suportar os outros."

ÉMILE CHARTIER (1899). “Sur la mémoire” in Revue de Métaphysique et de Morale, VIIe année, janvier 1899, pp. 26-38, mai 1899, pp. 302-324, septembre 1899, pp. 563-578. Tradução minha.


Nem a matéria, nem o espaço nem o tempo são o que sempre foram


Les trois états du capital culturel

La notion de capital culturel a été construite pour rendre compte de l'inégalité des performances scolaires, en mettant d'emblée l'accent sur l'inégale distribution entre les classes des instruments nécessaires à l'appropriation des biens culturels (e.g. oeuvres d'art). Les propriétés du capital culturel existant à l'état incorporé, i.e. intériorisé sous forme de disposition permanente et durable (habitus), sont pratiquement réductibles au fait qu'il s'agit d'une forme de capital identifié aux individus : son accumulation demande du temps, bien social difficile à s'approprier par procuration; il demande un investissement personnel; son accumulation est limitée par les limites biologiques de son support, etc. Ces propriétés spécifiques qui, étant perçues comme liées à la personne, ajoutent aux avantages de l'héritage les apparences de l'inné et les vertus de l'acquis, et font du capital culturel incorporé le moyen de transmission légitime par excellence du patrimoine lorsque les formes directes et visibles de transmission tendent à être socialement considérées comme illégitimes. Les biens culturels (livres, tableaux, machines), capital culturel à l'état objectivé, sont transmissibles instantanément et appropriables formellement dans leur matérialité, mais les conditions de leur appropriation spécifique sont soumises aux mêmes lois de transmission que le capital culturel à l'état incorporé. Le capital culturel peut exister enfin sous la forme institutionnalisée de titres scolaires, qui, comme la monnaie, sont relativement indépendants par rapport au porteur du titre. Cette forme certifiée et garantie du capital culturel permet de poser le problème des fonctions sociales du système d'enseignement et d'appréhender pratiquement les relations qu'il entretient avec le système économique.

BOURDIEU, Pierre. Les trois états du capital culturel. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 30, novembre 1979. pp. 3-6

quarta-feira, 28 de março de 2018

Lugares de memória


Pensar espaços, tempo real, virtualidade. Lugares, enfim, onde se sedimentam as nossas memórias. Estas são o resultado de vivências sociais, econômicas, culturais e, por que não, políticas. Porque o espaço conta histórias. Saber ouvi-las é integrá-las também à nossa história, não obstante ser perfeitamente possível estar-se em algum lugar sem manter com ele qualquer conexão. Espaço é um conceito. Uma abstração que não se apreende sem pertinências que implicam em seu redimensionamento em cenários que a memória organiza. Lugares de memória são, por isso mesmo, inestimáveis patrimônios culturais, marcos de um passado que, ao contrário da história, permanece aberto, ativo, passível de exploração, integrando um processo identitário. 

domingo, 25 de março de 2018

Janet e o sentimento de vazio


Capítulo I – Os sentimentos fundamentais 
I. O sentimento de vazio

Esse curso é a aplicação de nossos estudos sobre os sentimentos a um caso particular: os sentimentos afetivos.
Estudamos até aqui os sentimentos de uma maneira abstrata e geral. Analisamos notadamente o esforço, a fadiga, a alegria, a tristeza, o sucesso, o fracasso, etc. Mas essas noções abstratas sobre os sentimentos só são boas nos livros: elas não podem existir no mundo real sem se relacionar a tal ou qual fenômeno em particular. Por exemplo, o sentimento do esforço se relacionará sempre a algum trabalho especial, ele será associado a tal conduta ou a tal ação, locomoção, porte de um fardo, redação de um livro, etc. Uma multiplicidade de problemas interessantes seriam assim colocados pela aplicação dos sentimentos fundamentais às diferentes condutas psicológicas.
Um estudo capital a realizar seria aquele das relações entre os objetos e os sentimentos. Por exemplo, ver-se-ia que a alegria e a tristeza são os sentimentos que se unem o mais frequentemente à propriedade. O estudo dos objetos deveria, pois, reunir-se àquele dos sentimentos.
Os sentimentos deveriam ser também examinados em suas relações com a personalidade. A personalidade se desenvolve, com efeito, em grande parte pelos sentimentos, notadamente pela afeição, ou a admiração que se tem por si próprio, o que nada tem de excepcional[1].
Este ano, vamos nos deter na combinação dos sentimentos com a personalidade dos outros, ou seja, a combinação dos sentimentos com as condutas sociais, pois estas se compõem de relações entre nossas próprias condutas e a personalidade dos outros.
Iremos, pois, estudar duas partes essenciais: primeiro, o estudo dos sentimentos elementares eles mesmos e aquele das condutas sociais à quais eles podem se relacionar; em segundo lugar, o estudo dos sentimentos afetivos propriamente ditos, que resultam das relações entre os sentimentos elementares e as condutas sociais.
Os sentimentos se relacionam a quatro grupos fundamentais:
1º O esforço.
2º A fadiga.
3º O fracasso, ou tristeza, ou ainda angústia.
4º O sucesso, ou alegria, ou ainda triunfo.
As condutas sociais que examinaremos a seguir se relacionam a três grupos principais:
1º As condutas sociais elementares, reações simples correspondendo ao nível dos animais.
2º As condutas sociais médias, reações correspondendo ao nível médio dos homens.
3º As condutas sociais superiores, morais, artísticas, abstratas, etc. Nessas últimas, o papel dos sentimentos é menos importante que no grupo precedente.
 Antes de abordar o estudo dos quatro grupos elementares de sentimentos, gostaria de resumir aquilo que já disse no último ano a propósito do que chamei do sentimento de vazio, que corresponde precisamente à ausência quase completa de todo sentimento.
É um sentimento surpreendente, frequente entre os esgotados e os neurastênicos. Poder-se-ia defini-lo como o sentimento da perda de sentimentos, o sentimento de quem não tem sentimento. Os neurastênicos que sofrem desta perturbação se queixam primeiro de que sua cabeça é vazia. Trata-se de uma metáfora, porque não se pode ter o sentimento de cheio na cabeça. Trata-se de um vazio moral. Uma nuvem separa os objetos exteriores do doente. Ele nada mais ama e nada mais detesta. Existe um véu entre ele e as coisas. Talvez exista aí, de qualquer modo, um sentimento, um sentimento de evasão. Em todo caso, o doente perdeu os sentimentos que todos nós temos relativamente aos objetos: sentimento de satisfação, sentimento de propriedade, sentimento de sofrimento.
A propósito desse último sentimento, é preciso ter muito cuidado em distinguir a dor e o sofrimento. A dor é uma reação física, um ato de distanciamento, um gesto de retirada, que pode mesmo resultar em coma, sem intervenção da consciência. O doente que tem o sentimento de vazio conserva o ato físico da dor, as reações à dor; mas o sofrimento é exclusivamente um sentimento, e o vazio o suprime. Retenha-se, pois, que o vazio suprime o sentimento de sofrimento, mas conserva o ato da dor.
O sentimento de vazio é frequentemente acompanhado do sentimento da perda de interesse, que normalmente preenche toda nossa vida, que é a causa de todas as nossas percepções. Algumas vezes existe apenas a diminuição do interesse sem sua desaparição total. O objeto parece então distante, pequeno, estranho. Por que estranho? É que o objeto não está mais acompanhado dos sentimentos que nós acrescentamos sempre aos objetos e que a eles são estreitamente associados. E em último estágio, o objeto se torna irreal.
A afeição pelo eu, o interesse que se tem por si mesmo, desaparece com a aparição do sentimento do vazio. De onde o suicídio frequente entre esses doentes: o medo da morte, quer dizer, o amor de si, ou o gosto pelas coisas desaparecem todos. Em uma das minhas observações, um doente estava acometido de um delírio no qual ele se acreditava morto, ainda que estivesse perfeitamente vivo: é que ele perdera o amor, o ódio, o interesse, e isso de uma maneira total, absoluta. Outro doente tornou-se invisível: o que queria dizer por aí e por que se queixava? Eis a explicação: os deprimidos querem que nos ocupemos deles, desinteressam de interessar os outros; se eles não se sentem interessantes, importantes, eles consideram que deixaram de existir, de serem visíveis. E aquilo que eles pensam deles eles transformam imediatamente em realidade: são invisíveis.
Os fenômenos de transposição da pessoa, de sua exteriorização, aproximam-se dos precedentes: o doente se acredita fora de seu corpo, ele contempla seu próprio corpo, ele se assiste viver. Como e por que ele tem essa conduta? O sentimento de vazio, que dá uma percepção dos atos sem os sentimentos que os acompanham, explica-o muito bem: o homem que se encontra preso a esse sentimento, e que se observa, todavia, como todos os homens, só pode contemplar-se do exterior: existe aí a exteriorização.
A lembrança desprovida de sentimento, a lembrança que parece muito antiga, sem data precisa, é também muito frequente.
Passamos rapidamente em revista as principais manifestações do sentimento de vazio. Como explicar esse fenômeno da ausência de sentimento?
Pode-se explicá-lo, como já se tentou, pela desaparição das sensações? Não: todas as sensações elementares subsistem perfeitamente.
Pode-se explicá-lo pela perda dos sentimentos relativos ao próprio corpo? Não: o doente conserva o sentido muscular e o sentido do movimento.
Pode-se explicá-lo pela existência de perturbações viscerais, problemas da respiração, da circulação, da digestão? Não, o doente tem suas sensações viscerais normais: ele sente que ele respira, que seu coração bate, que ele é constrangido por uma necessidade natural.
O que pode então faltar no sentimento de vazio? O que falta é a ação: o doente é inativo, não tem vontade de fazer nada. Desapareceram nele certas operações psicológicas que não mais podem se realizar.
Toda conduta psicológica se compõe de duas categorias de fenômenos: de uma parte, os atos primários determinados pelo mundo exterior (como o ato de retirar a mão sob a sensação de uma queimadura); de outra parte, numerosos fenômenos secundários, aqueles que Sherrington chamou reflexos proprioceptivos, em oposição aos reflexos exteroceptivos. São fenômenos determinados no próprio sujeito. Todos os sentimentos são assim reflexos proprioceptivos que se acrescentam à ação primária, elementar, para modificar, ativá-la, atrasá-la, detê-la momentânea ou definitivamente. O que falta no sentimento de vazio são justamente esses fenômenos secundários.
O exame dos doentes afetados pelo sentimento de vazio coloca, pois, em relevo, a existência de fenômenos secundários nos homens normais e nos introduz naturalmente no estudo dos sentimentos. Na próxima lição, veremos os sentimentos que se relacionam ao primeiro grupo: aquele do esforço.

Tradução minha do capítulo I, parte I.
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.


[1]    Cf. notre Cours sur L’évolution psychologique de la personnalité, 1929.

sábado, 24 de março de 2018

ECCE HOMO

"Não considero o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: em mim 
decorre do instinto. Sou demasiado curioso, demasiado problemático, 
demasiado insolente, para me contentar com uma resposta grosseira. 
Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para connosco, pensadores 
– no fundo, é mesmo apenas uma grosseira proibição: não deveis 
pensar!..."

Friedrich Nietzsche 

sexta-feira, 23 de março de 2018

A propósito


Seguramente os países são como as suas leis. Porque o Direito, assim como as demais estruturas sociais, aparece como um amálgama de interesses cuja prevalência de uns sobre outros varia ao ritmo das políticas. O Direito, assim, toma as cores do poder e satisfaz a vontade do mais forte. Compreender os mecanismos desse poder e o funcionamento da sociedade, inclusive em suas manifestações de ordem cultural, hábitos e costumes, leva à compreensão de Direito aí vigente. Explica-o, através de elementos significativos dessas fontes heurísticas, tão valiosas quanto as bibliográficas.
Imagem: Vitral que representa São Luis fazendo a justiça. Igreja de Saint Médart, Thouars. Fonte: Wikimedia Commons.

Fotografia

Vista de Porto Alegre.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Tempo, Destino e Morte


"A vida do homem, vista por fora, é pequenina em comparação com as forças da natureza. O escravo é condenado a adorar o Tempo, o Destino e a Morte, porque são maiores do que tudo o que ele encontra em si mesmo, e porque todos os seus pensamentos são de coisas que essas forças devoram". [1]



[1] RUSSEL, Bertrand. A adoração dos homens livres (1903) in Misticismo e Lógica, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1957, p. 67.

terça-feira, 20 de março de 2018

Da infinita subjetividade

"Si l’homme doit s’élever contre la servitude de l’histoire, ce n’est pas pour s’isoler, mais pour faire entrer toute l’histoire dans son infinie subjectivité, dans laquelle le monde fait partie de l’homme."

Nicolas, BERDIAEFF (Berdiaev) [1874-1948]. De l’esclavage et de la liberté de l’homme. [1946] Traduit du Russe par Samuel Jankelevitch, décédé en 1951. Paris : Aubier, Les Éditions Montaigne, 1963, 302 pp. Collection “Philosophie de l’esprit.” Première publication : 1946, p. 298.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Porto Alegre

Chalé da Praça XV, Centro Histórico de Porto Alegre, vista parcial.

domingo, 18 de março de 2018

Revista Vida Brasil

Dai à história o que é da história e à memória o que ela escolher

sexta-feira, 16 de março de 2018

Por que se importar com o cotidiano de gente comum que vive a cidade? Uma cidade. Qualquer cidade. O que fazer dessas memórias de um dia a dia que não é história? Fragmentos da vida de gente simples, humilde, que ocupa calçadas com cadeiras e conversa enquanto a Avenida Paulista dá passagem às massas? Que importa?Muito talvez.

Dai à história o que é da história e à memória o que ela escolher


Porque cidades são únicas, por mais que se assemelhem. Únicas, em toda extensão desse termo. Porque é no que se diferenciam que reside muito justamente o ethos que elas, ― cada qual a seu modo ―, conferem a seus cidadãos citadinos. Por isso, falar de cidades é falar de suas idiossincrasias. Assim o nevoeiro místico de Paranapiacaba ou o doce balanço das bandeirinhas em festa nas ruas de Mogi das Cruzes, para sempre louvadas pelo pincel de Volpi.
Nossas cidades nos identificam talvez mais ainda que as nações. Todavia, essa maior ou menor importância conferida às cidades tem parte com a história às vezes; outras, com a memória. Algumas a história, a grande história, perpetuou. Outras têm de seu apenas a memória e o culto citadino e cotidiano das vidas nelas vividas por sua gente. Por isso talvez se possa bem dizer que cidades vivem entre a memória e a história, e que saber um pouco sobre isso pode ter lá a sua importância.
E tem. 
Especialmente nesse tempo em que vivemos, nesse quando presente para nós, pacatos cidadãos, para quem a grande história não mais importa tanto quanto outrora, naqueles tempos em que não éramos nem poderíamos ser dela os protagonistas. É que o homem comum tem vencido essa luta e, por memoráveis caminhos, vem adquirindo lá o seu protagonismo, que só faz aumentar. Verdade que isso se deve bem mais ao fato de ele movimentar o mercado do que ao reconhecimento de sua cidadania e dignidade como pessoa humana no mundo. Todavia, aqui importa dizer que o comum dos homens tornou-se protagonista da história há pouco mais de um século para cá. Desde então o grande vem cedendo lugar ao pequeno, e isso se fez marcar por um retorno quase que obsessivo à memória.
Lembrar importa cada vez mais.
Mas como dar à história o que é da história e à memória o que é dela ou, na verdade, tão nosso afinal? Porque frequentemente se vê uma disputa entre memória e história, em que pese sejam ambas muito diferentes. Há uma forma clara de se perceber essa diferença. A história é de ordem cognitiva e tem o tempo como sua matéria prima. É inteligível na medida em que podemos compreender a passagem do tempo na inexorável separação entre o ontem e o hoje. Ela, história, consiste em um saber ou, no mínimo, tem pretensões a tanto, ao buscar uma universalidade propícia a generalizações, em que pese o fato de eventos passados não poderem ser replicados. Comprometida com a verdade, se esta última se torna inapreensível ou quase metafísica, ela, história, não se contenta com menos do que a verossimilhança. Já a memória é de ordem ideológica, portanto, é franca e assumidamente seletiva. Sua matéria prima é a emoção, e podemos compreender a memória à medida que seus apelos encontram resposta na reciprocidade do outro em nós, na alteridade, portanto. Escolhe-se o que se quer lembrar e o que se deseja esquecer.  Na ordem do cotidiano de gente comum, a memória se perde, caso não seja registrada de algum modo. Basta ver quantas histórias contadas em cartas, quantos fatos gravados em agendas, quantos segredos confidenciados a diários, fora rascunhos, anotações, cartões, lembranças, convites, listas de compras. E isso apenas no âmbito privado da memória, das pertinências que tem com o íntimo de cada um. Haveria ainda o dia a dia sociabilizado nas práticas festivas, nas pequenas publicações, na imensa pluralidade de construções que a imprensa permite, nas notícias perdidas em um rodapé de página, nos convites para enterro, nas participações de noivados, núpcias e nascimentos. Tantas coisas que aparecem no mundo, muitas insuspeitas da importância que a corrida arquivística, todavia, só faz revelar. Tudo porque esse tipo de documento tem merecido atribuição crescente de valor, especialmente nas últimas décadas.
Mas como relacionar história e memória?
Tudo depende muito do que se busca encontrar. Quando a história se vale da memória, quando interroga um documento, um suporte memorável, tem por dever, em uma primeira abordagem, identificar o objeto, sua origem, seu tempo e as circunstâncias todas que cercaram o seu aparecimento no mundo. Portanto, diante de memórias, desde o seu suporte material até o seu conteúdo ideológico, tudo isso merece um exame cuidadoso da parte do historiador, que deve fazê-lo muito antes de tratar da história propriamente dita.  Muitos poderão argumentar que também a memória se posiciona dessa forma, mas a resposta é que não, nem sempre. Sobre o operador de memórias essa regra não pesa de forma tão decisiva. Basta ver que é possível registrar memória de fatos míticos, e ainda de fatos nunca provados em termos históricos. Há museus de seres imaginários e mesmo de extraterrestres. Podem-se coletar lembranças de uma comunidade perpassada de mitos e lendas, onde sacis e boitatás ganham existência real. Tudo o que representa o ideário humano pode ser apropriado livremente pela memória. Não se trata, para o operador da memória, do valor informativo daquele registro, mas de seu potencial de representatividade imediato, compartilhável entre presentes, algo que também informa, naturalmente, mas em outra esfera do saber. Memória não é passado, mas um presente vivenciado na esfera das sensibilidades, dos sentires, das emoções. A memória prescinde de qualquer neutralidade.
Assim é que, quando se deseja operar na ordem das memórias, quase nunca se busca o valor informativo real e generalizável, a qualidade altamente verossímil de um dado documento, tanto do ponto de vista de sua materialidade quando do ponto de vista de seu conteúdo ideológico, sempre coerente, sempre relacionável ao tempo a que pertence quanto às circunstâncias que cercaram o seu aparecimento no mundo. Esse mister pertence ao historiador, que dele não se pode, aliás, não deve, se afastar. À memória, não é o dado universal que interessa, e, não raramente,  o dado altamente verossímil que se extrai de umdocumento. O que orienta e determina a construção da memória não é necessariamente a verdade, pois a memória conforta bem a possibilidade de um uso político, por exemplo. Porque, a ação de monumentalizar memórias, — memórias compostas, aliás, predominantemente, de fragmentos, como podem ser aquelas pertinentes ao homem comum —, é uma ação que congela versões quase sempre totalizantes e totalizadoras. Escolhe-se aquilo que conforta a versão que se pretende praticar. É o velho uso político do passado que descobre, muito facilmente, nos fragmentos cotidianos, um material cuja maleabilidade é flagrante.
Todavia, o que se encontra de mais fascinante e valioso no microuniverso da cotidianidade vivida por gente comum é que o registro dessas vivências, seus suportes materiais tão variáveis e tão surpreendentes às vezes, é aquilo que eles significam do ponto de vista das sensibilidades e das sociabilidades. O historiador, por sua vez, pode neles encontrar sinais altamente denunciadores do efeito que os grandes acontecimentos imprimem ou não às pessoas comuns. A comprovação indireta do grau de repercussão de um fato histórico em dado tempo e lugar. Um poder que pode ser usado em dupla via. Porque, não raramente, esses pequenos fragmentos do comum podem, como reagentes, desmentir grandes verdades, impactando momentaneamente um acontecimento. Para tanto, seriam como que poções mágicas que fariam desaparecer, com um simples abracadabra, o atributo de grandeza do herói ou a vilania do criminoso.  A memória tem esse poder ainda que nem sempreperdurável. Vê-se isso constantemente. A força dos potins, que já foi a ruína de muitas reputações, força esta consagrada pelas velhas mexeriqueiras de antigamente, hoje se propaga em tempo real, revigorada pelas redes sociais. E se volta, quase que naturalmente, contra tudo aquilo que adquire notoriedade. Não é corriqueiro que baste alguém desfrutar de cinco minutos de celebridade para sofrer, quase que instantaneamente, o bombardeio das mídias? Aprofunda-se a memória no diz-que-diz, e a informação se fabrica sob medida, assim como as memórias se ajustam e reajustam, ― retocadas ―, ao compasso das disputas ideológicas que por aí tem lugar.
Uma sugestão para quem pretendesse visitar a cotidianidade citadina? Seria preciso relativizar o dado axiológico inerente a documentos pertinentes à esfera privada, íntima ou institucional. Porque se tratam quase sempre de valores que não residem apenas no que são esses documentos por si mesmos, isoladamente, mas da qualidade das informações que muitos deles oferecem, quando contextualizados, capazes, inclusive, de servir de indicadores face aos grandes acontecimentos a cuja sombra vive o comum dos homens. Não se deve crer no grande quando nele não se encontra o reflexo do pequeno. Essa máxima alquímica, que deve ser entendida em dupla via, indica que nada é tão simples. A carta do soldado escrita à namorada em tempos de guerra representa esta última muito mais intensamente do que o livro do historiador. O grandioso, como o absoluto, é opaco. No pequeno, porém, essa opacidade é varrida pela transparência e pela espontaneidade dos fragmentos que o comum dos homens deixa atrás de si, graças à memória esboçada pela poesia das conversas de calçadas, pelos sabores, cores e cheiros que traduzem tão fielmente o universo sensível de tudo o que a razão é incapaz de apreender.
Diante desse cenário, na consciência do pacato cidadão que habita a cidade e que por ela se movimenta por dias e dias, pouca diferença faz a relação entre emprego e renda, assim como em que mãos se concentram os meios de produção. A ele, certamente, na dimensão de sua humanidade, importam mais as ruas pelas quais deve passar, as lendas urbanas das quais ouviu falar, os hábitos que se fixam pelo ir e vir, as cores e os cheiros que sente, os lugares aonde vai trabalhar, divertir-se, rezar ou chorar.
Berçário e asilo dos homens, as cidades podem ter sua história, tão certa quanto neutra na exata medida fornecida pelos números, mas é por suas memórias quvai se diferenciar de tantas e tantas outras que também a ela se assemelham na ordem das quantificações. O homem providencial e seu destino histórico agonizam sob o descrédito de uma Providência desmentida pelas estatísticas. Mas, em que pese anônimo, cada pequeno homem pode vir a ser um pequeno príncipe, capaz de assimilar e de conferir sentidos a cada uma das rosas que desabrocham nos jardins e praças de sua cidade.


Autor: Maristela Bleggi Tomasini

domingo, 11 de março de 2018

Do herói


[67]"O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde
sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto
não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com
razão, pois a perfeição e completude do sistema de valores que
determina o cosmos épico cria um todo demasiado orgânico para
que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma,
tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como
interioridade, a ponto de tornar-se individualidade. A onipotência
da ética, que põe cada alma como única e incomparável, permanece
alheia e afastada desse mundo. Quando a vida, como vida,
encontra em si um sentido imanente, as categorias da organicidade
são as que tudo determinam: estrutura e fisionomia individuais
nascem do equilíbrio no condicionamento recíproco entre
parte e todo, e não da reflexão polêmica, voltada sobre si própria,
da personalidade solitária e errante. Portanto, o significado
que um acontecimento pode assumir num mundo de tal completude
é sempre quantitativo: a série de aventuras na qual o
acontecimento é simbolizado adquire seu peso pela importância
que possui para a fortuna de um grande complexo vital orgânico,
de um povo ou de uma estirpe. Que os heróis da epopeia,
portanto, tenham de ser reis tem causas diversas, embora igualmente
formais, da mesma exigência para a tragédia. Nesta, ela é
fruto apenas da necessidade de remover do caminho da ontologia
do destino todas as causalidades mesquinhas da vida: porque
[68] a figura social culminante é a única cujos conflitos, preservando
a aparência sensível de uma existência simbólica, resultam exclusivamente
do problema trágico; porque somente ela, já em sua
forma de manifestação externa, pode cercar-se da atmosfera indispensável
à significação isolada. O que era símbolo na tragédia
torna-se realidade na epopeia: o peso da vinculação de um
destino com uma totalidade. O destino universal, que na tragédia
não passava da sequência necessária de zeros transformados
em milhão pelo acréscimo da unidade, é o que, na epopeia, confere
conteúdo aos acontecimentos; e o fato de portar tal destino
não cria isolamento algum à volta do herói épico; antes, prendeu
com laços indissolúveis à comunidade cujo destino cristaliza-se
em sua vida."

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: editora 34, 2007, p. 67,68.