terça-feira, 24 de novembro de 2020

Recorte de Pesquisa

Uma palavra sobre o batismo

 Em que pese reivindicado por Ferri, o batismo da expressão psicologia coletiva comporta outras referências anteriores a 1884. Pode-se encontrar menção a ela em obra publicada em 1845, fora, todavia, do contexto das multidões e da criminologia, contexto em que Ferri, em tese, aparece como percussor de seu emprego.

Foi Littré (1845) em sua obra intitulada Analyse raisonnée du cours de philosophie positive de M. Auguste Comte quem abordou o assunto, bem antes de Ferri, portanto. Émile Littré, reconhecido dicionarista francês, segundo Petit (2016, passim), já era um autor conhecido quando leu o Cours de philosophie positive de Comte, que aparece em 1839, inaugurando a sociologia. Entusiasmado a princípio, Littré se afastou depois dessa doutrina, de sorte que, em 1852, deixa a sociedade positivista que havia ajudado a fundar quatro anos antes. Todavia, enquanto entusiasta, publicou a pequena obra acima referida, de apenas sessenta e duas páginas. Nela, a expressão psicologia coletiva aparece em contexto ligado à concepção comtiana da sociologia, que Comte via como totalizante, como algo essencial à compreensão da causa e do objetivo de todas as ciências preliminares, — as demais —, comparáveis a “afluentes sucessivos na grande corrente da história” (id., p. 46). Comte pretendia chegar a uma concepção geral de todos os fenômenos, tanto na ordem objetiva como subjetiva, tanto na ordem cósmica como social, ou seja: uma filosofia positiva, com razões plausíveis. Tais razões, contudo, nem a filosofia teológica nem a filosofia metafísica poderiam fornecer. Estas últimas — “aos olhos da filosofia positiva” (id., ibid.) —, teriam “sua origem nas condições essenciais da psicologia coletiva e da evolução histórica” (id., p. 46-47). Elas conduziriam ao erro, porque resultariam de uma perversão do espírito, sem descartar, contudo, resultassem elas — quem sabe? —, de “uma permissão da Providência, cujo julgamento é impenetrável” (id., p. 47). Enfim, o contexto aponta para uma psicologia coletiva que aí aparece apenas como condicionante que bem poderia resultar da própria negação que Comte fez psicologia como tal, que considerava inútil, como afirmou claramente em pelo menos duas ocasiões no segundo volume de seu Cours de philosophie positive.

Comte (1894, p. 652-653) encontrava “uma profunda inanidade necessariamente inerente à psicologia moderna". Isso se deveria, não só a uma “absurda alucinação que caracteriza necessariamente seu modo especial de exploração interior” como ao fato de ela se propor a realizar, “em relação aos mais complexos fenômenos, esse grau inoportuno de análise elementar que se está disposto a eliminar dos mais simples estudos, sem que tenha conseguido apenas conduzir essa inútil investigação até o nível das noções inspiradas de todos os tempos, nesse sentido, pela experiência vulgar” (id., p. 652-653). Mais adiante, não deixa de registrar que a psicologia moderna já deveria ter sido “radicalmente condenada”, assim como ele já teria demonstrado, “seja por sua viciosa instituição do sujeito, seja pelo evidente absurdo de seu principal modo de exploração”, modo este que estaria destinado a fazer uso com um gênero de análise elementar, relativamente aos fenômenos mais complexos, “cujo equivalente foi sabiamente descartado dos estudos mais simples como quimérico e perturbador” (id., p. 691).

Mais tarde encontraremos ainda outra menção à psicologia coletiva, com Nefftzer (1859) que, a propósito de um exame acerca da construção da história, — a morte de Toqueville ocorrera pouco antes — formula uma crítica dirigida justamente à obra de Littré a que nos referimos. Faz isso em sua Chronique parisienne, publicada na Revue Germanique que ele mesmo fundou. Segundo a crônica, Toqueville teria sabido entender a complexidade da história. O patriotismo e os sentimentos pessoais tenderiam a certo exagero, que uma filosofia da história deveria moderar, evitando, pela imparcialidade, cair naquilo que ele chama de um otimismo vulgar (id., p. 233). A palavra progresso, por sua vez, também assumiria sentidos universais, projetando-se em doutrinas, que subjugariam o pensamento. A propósito destas, menciona Littré, que escrevera um opúsculo, obra da qual Nefftzer omite o título, mas que, pelas citações literais que faz, não pode ser outra senão a acima citada, a respeito de Comte. A doutrina positiva seria uma dessas que subjugariam o pensamento, por levar longe demais as especulações humanas.

Eis, assim, o contexto em que a expressão psicologia coletiva aparece anteriormente a Ferri e ao emprego que fez em sua obra sobre Processo Penal. Sem dúvida, a expressão já existia, todavia, — ao menos ao longo do que se pôde apurar até agora na pesquisa — ainda não relacionada ao contexto das multidões que é justamente aquele que nos interessa aqui.  Dessa sorte, Ferri bem poderia permanecer, — como ele mesmo insiste — como o responsável por esse batismo.


Comte, A. (1894). Cours de philosophie positive, 5ed, T. 2. Paris: Au siège de la Société Positiviste.

Littré, E. (1845). Analyse raisonnée du cours de philosophie positive de M. Auguste Comte. Utretch: Kemink & Zoon.


Nefftzer, A. (1859). Chronique parisienne. Revue Germanique, t. VI. Paris: Bureau de la Revue Germanique, pp. 232-285.

Petit, A. (2016). Comte revu et corrigé : le cas LittréRevue européenne des sciences sociales, 54-2(2), 69-88. Recuperado de https://www.cairn.info/revue-europeenne-des-sciences-sociales-2016-2-page-69.htm em 23 de junho de 2019.


domingo, 15 de novembro de 2020

O Homem e a morte

 

 "Hoje, as filosofias revolucionárias colocam a morte entre parênteses e as filosofias reacionárias estão sob o signo da morte(1). A morte é o palco eterno, o campo de batalha cuja posse confere poder sobre as almas. Quem tem a morte tem o domínio!"

(1) O que obviamente não significa que todas as filosofias que colocam a morte entre parênteses são revolucionários nem que toda pessoa obcecada pela morte seja reacionária.

MORIN, Edgar. L’UOMO E LA MORTE. Trad. de Riccardo Mazzeo .Trento: Edizioni Centro Studi,  2014, p. 248.


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Fontes


Quando se escreve um livro, artigo, texto que seja, enfim, consultam-se fontes. Muitas vezes, essas fontes são contemporâneas aos fatos dos quais se trata, e, neste caso, dizemos que elas são fontes primárias. Jornais, fotografias, livros, enfim, tudo que é contemporâneo aos fatos estudados pode ser considerado como fonte primária de pesquisa. Este vídeo foi feito com base em documentos que serviram de fonte ao Livro dos Cem Anos do Laboratório de Psicologia Experimental da Escola Normal Secundária de São Paulo.

Sei bem que nem todo mundo entende o sentido de alguém se dar ao trabalho de fazer um vídeo como este. São simples "fontes" de pesquisa. Notícias de jornais e livros de um quando que não é mais o nosso, um quando do outro que, além de ser outro que não nós, é outro em um tempo ao qual não se pertence. Um abismo nos separa do outro na história, e falo da História mesmo. Transpor esse abismo é lançar-se em uma aventura, percorrer páginas e páginas em busca de pistas, acontecimentos, fatos, indícios de algo. Cada pedacinho desse material valioso será depois transformado em informação. É matéria prima que representa fragmentos do passado. Pesquisar é viajar no tempo. Uma viagem que exige muito mais do que deslocar-se no espaço: não se vai ao passado, porque o passado é irrecuperável. Ele não têm existência, mas versões. Pesquisar o passado, buscar o outro em outro tempo, requer um exercício de sensibilidade, uma adequação a sociabilidades que nos são estranhas. É um trabalho muitas vezes solitário. E poucos são os que entendem o fascínio de uma pesquisa, o gosto da descoberta, por vezes, de uma informação mínima. 

Pesquisar é afrontar o Todo Poderoso deus que é o Tempo. É buscar, apesar dele, ver, ouvir, perceber o outro que nos acena do passado. Tenho para mim que, independente do produto obtido em uma pesquisa, independente de seu resultado prático, a exploração das fontes, especialmente quando elas são primárias, já é, em si mesmo, um produto: um arquivo que não raramente o pesquisador guarda em separado com as sucessivas versões daquilo que fez.  

Talvez por isso mesmo eu ame tanto pesquisar e arquivar. Colecionar informações para descobrir por quais misteriosas articulações elas nos sugerem sentidos.Como se houvesse uma linguagem inerente às coisas, uma poderosa linguagem que nos descobre padrões mesmo nas menores particularidades. Um trabalho tão rico que nos torna tanto melhores quanto mais velhos ficamos, por termos percorrido décadas e nos habituado a mudanças. 


Centofanti, um outsider na historiografia da Psicologia (05.10.1948 – 12.08.2020)


Sobre Rogério, artigo de Ana Maria Jacó-Vilela, professora associada da 
Universidade do Rio de Janeiro, sobre Rogério: Centofanti, um outsider na historiografia da Psicologia (05.10.1948 – 12.08.2020) 

Jacó-Vilela, A. M. (2020). Centofanti, um outsider na historiografia da Psicologia : (05.10.1948 – 12.08.2020) . Memorandum: Memória E História Em Psicologia37. Recuperado de https://periodicos.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/25711 

sábado, 26 de setembro de 2020

XIV Encontro Clio-Psyché


 

XIV Encontro Clio-Psyché 

Mantendo sua periodicidade bienal, mesmo na pandemia, o Encontro Clio-Psyché realizará sua 14ª Edição, de modo virtual, nos dias 5 e 6 de novembro de 2020.  Nesta edição, o Encontro será realizado conjuntamente com o IV Congresso Brasileiro de História da Psicologia.

Inscrições e submissão de resumos estão abertas até 31 de Agosto!

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A Transparência do Mal

"Entre a espécie microbiana e a espécie humana existe simbiose total e incompatibilidade radical. Não podemos dizer que o outro homem seja micróbio — jamais se opõem em sua essência nem se confrontam —; encadeiam-se, e este encadeamento está como que predestinado. Ninguém, nem o homem nem o bacilo, pode pensá-lo de maneira diferente. Não existe uma linha fronteiriça, uma vez que este encadeamento repercute ao infinito. Ou, em tal caso, há que se tomar a decisão de afirmar que a alteridade está aí: o Outro absoluto é o micróbio, em sua inumanidade radical, aquela de que nada sabemos e que sequer é diferente de nós. A forma oculta que tudo altera, e com qual não há negociação nem reconciliação possível. E, sem embargo, vivemos da mesma vida que ela e, enquanto espécie, morrerá ao mesmo tempo que a nossa — seu destino é o mesmo —. É como a história do verme e da alga: o verme alimenta em seu estômago uma alga sem a qual nada pode digerir. Tudo vai bem, até o dia em que o verme imagina devorar sua alga: devora-a, mas morre (sem nem sequer havê-la digerido, uma vez que ela já não pode ajudá-lo)."

BAUDRILLARD, Jean. La transparencia del mal. Ensayo sobre los fenómenos extremos. Tradução de Joaquín Jordá. Barcelona: Anagrama, 1991, p. 173-4.

domingo, 6 de setembro de 2020

L'Année psychologique

 Acesso às publicações 1894 - 2008

Créée en 1894, L’Année psychologique fut l’une des toutes premières revues au monde consacrée exclusivement à la psychologie scientifique. Elle publie des travaux relevant de différentes sous-disciplines de la psychologie cognitive dont en particulier la psychologie expérimentale, la psychologie du développement, la psychologie sociale, la neuropsychologie et l’histoire de la psychologie.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

XIV Encontro Clio-Psyché

 

IV Congresso Brasileiro de História da Psicologia

Mantendo sua periodicidade bienal, mesmo na pandemia, o Encontro Clio-Psyché realizará sua 14ª Edição, de modo virtual, nos dias 5 e 6 de novembro de 2020.  Nesta edição, o Encontro será realizado conjuntamente com o IV Congresso Brasileiro de História da Psicologia.

sábado, 15 de agosto de 2020

Homenagem Clio-Psyché


Rogério Centofanti (05.10.1948 – 12.08.2020)


A comunidade de historiadores da Psicologia no Brasil sofreu uma imensa perda para a COVID-19. Faleceu, em São Paulo, Rogério Centofanti, um dos nossos. Um dos mais originais e (como gostava de dizer) outsiders dos nossos. Sobrevivente de um câncer que o afligia desde 2015, Rogério foi mais uma das vítimas do COVID-19.

Leia na íntegra a homenagem do Clio-Psyché:
http://www.cliopsyche.uerj.br/?p=1466

http://www.cliopsyche.uerj.br/?p=1466&fbclid=IwAR2oPRE5BLD8XXhdqyL5xSetrDAh5ft5bqhPl0gp_L-WuDyH6BkPoF8POo4

https://www.facebook.com/cliopsyche/photos/rpp.232903476899346/1436722339850781/?type=3&theater

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Répondez s’il vous plaît

Seja como for, cartas permanecem como um território aberto a todas as perspectivas, pois refletem a consciência humana. Simples ou complexas, formais ou informais, sua materialidade é cheia de sentidos que se oferecem à nossa decifração. 


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Recortes de Pesquisa


"É a besta humana, em toda parte presente, tipo inalterável da espécie. São precisamente essas atitudes, essas tendências, esses fundos comuns de ideias simples, de impressionabilidade excessiva de homens primitivos que são suscetíveis de se adicionarem, de se somarem nas multidões, e que constituem a psicologia desses seres coletivos; porque as altas qualidades do coração e do espírito, pelas quais os homens se distinguem, pelo próprio fato da diferença de suas direções e de suas tendências, se opõe e se neutralizam mutuamente." (Anonyme, 1892, p. 181).

Anonyme. (1892). Causerie Bibliographique. Revue Scientifique, a. 29, t.I. Paris: Bureau des Revues.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Eros e Civilização


“A cultura exige contínua sublimação: para tanto, debilita Eros, o construtor da cultura. E a dessexualização, ao debilitar Eros, libera os impulsos destrutivos. Assim a civilização está ameaçada por uma separação instintiva na qual o impulso de morte luta para ganhar ascendência sobre os instintos da vida.”

MARCUSE, Herbert. Eros y Civilización. Trad. Juan García Ponce. Madrid: Sarpe, 1983, p.88.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Recorte de Pesquisa


Há ainda uma relação interessante e digna de registro que nos vem de um artigo publicado por La Grasserie (1908, p. 225). Ele relaciona a psicologia coletiva à psicologia linguística. O termo psicologia linguística, não obstante exato, seria inusitado, ainda que poucos, porém importantes pensadores, tais como Sayce, Max Müller, Darmesteter, Whitney, Humboldt, Steinthal, tenham se dedicado ao seu estudo. Essa psicologia linguística, todavia, ainda não desfrutaria de uma autonomia nítida, por tratar-se de uma “ciência mista situada entre a psicologia propriamente dita e a linguística”(id. ibid.) razão pela qual teria o que chama de uma inferioridade provisória. Aos psicólogos gerais, pareceria muito técnica e, aos linguistas profissionais, menos nítida que os elementos morfológicos e fonéticos aos quais se deveria a evolução das palavras, das formas e mesmo das ideias. Seu objeto, contudo, teria considerável extensão, extensão esta que nem o psicólogo nem o linguista aprofundaram, razão pela qual demandaria novas investigações que pediriam a colaboração de outros ramos da psicologia. A psicologia, por sua vez, em um plano abstrato e já bem antigo, estudaria o espírito humano em geral. Ela seria antiga e a única psicologia clássica (id., p. 226).  Ao lado dessa psicologia clássica estaria a psicologia individual, concreta, que, ao contrário da primeira, abordaria um dado ser, colocado ao alto da escala biológica, porém distinto de todos os outros. Ele estaria presente nos romances e nas biografias, mas, fosse real ou imaginário, seria sempre individual. Entre essas duas psicologias, estaria a psicologia coletiva, recente e mais ampla do que aquela voltada ao estudo de um único indivíduo, porém mais restrita que a outra, coletiva do gênero humano, limitando-se “grupos mais ou menos extensos e de diversos tipos: psicologia étnica, aquela das classes, aquela das profissões, aquela das raças, aquela das multidões” (id. ibid.). Seriam essas psicologias coletivas às quais a psicologia linguística de relacionaria, abordando porém fatos já separados de seu produtor. Nesse sentido, seria uma psicologia coletiva, voltada a grupos de homens, ao produto de seus pensamentos. A linguagem, conclui Grasserie (id., p. 255), em seus mais variados aspectos, desde sua forma mais elevada que seria a versificação até a mais inferior, a gíria, seriam objeto dessa psicologia linguística, nova, mas nem por isso menos importante no campo da linguagem.

Grasserie, R. de La (1908) De l'ensemble de la psychologie linguistique. Revue philosophique de la France et de l'étranger, t. LXV a. 33. Paris: Félix Alcan, éditeur, pp. 225-255.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

As palavras e as mulheres


Vista como sistema simbólico, a língua exprimiria relações sociais e não se limitaria apenas a facilitar a comunicação. A língua permitiria mesmo a censura, a mentira, a violência e outras coisas, tais como o prazer e o gozo, e até a opressão. Assim, o modo como o indivíduo se relaciona com a língua remeteria à forma como ele se relaciona socialmente, variando de acordo com parâmetros tais como classe social, grupo étnico, idade, profissão, região e outros, em especial, a diferenciação sexual. Há uma língua dos homens e outra das mulheres? A língua é, afinal, sexista? Parece que sim. A questão, todavia, permanece: seria suficiente suprimir, por exemplo, termos considerados como sexistas para a mentalidade sexista fosse, por sua vez, suprimida também?
Escrito em linguagem simples, às vezes polêmica, a obra traz elementos de sociolinguística como base para uma argumentação feminista.
Ref.: YAGUELLO, Marina. Les mots et les femmes. Essai d'approche socio-linguistique de la condition féminine. Paris: Payot, 1992.

sábado, 4 de abril de 2020

Alfred Espinas


“Parviendra-t-on à déterminer les lois de la vie sociale pour l'humanité? nous l'ignorons. Mais nous croyons que ces lois, si jamais elles sont découvertes, auront un grand caractère de généralitéet formeront le couronnement naturel deslois qui régissent le système du monde.”(ESPINAS, 1877, p. 12)

Por que falar deste livro? Particularmente interessei-me por ele quando descobri que aparece como primeira frase de o "O Homem Delinquente" de Cesare Lombroso. Primeira parte, primeiro capítulo, e a remessa a outra obra: "Depois que Espinas aplicou seu estudo da zoologia à ciência sociológica...". Naturalmente há outras obras ali mencionadas, mas Espinas marcou, até porque esse seu estudo é citado outras vezes ao longo da obra e deste capítulo, em particular, no qual Lombroso examina a aparência dos delitos entre plantas e animais, especulando a propósito de supostas "leis sociais" que, uma vez descobertas, pudessem ser generalizadas de sorte a nos facultar a compreensão do fenômeno criminal, na verdade, a possibilidade de sua naturalização, tudo bem ao gosto do século XIX.

ESPINAS, Alfred. Des sociétés animales, étude
de psychologie comparée. Paris: Germer Baillière et Cie, 1877.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Das decisões

"O patrício ou o mandarim em assuntos econômicos, profissionais, científicos, artísticos ou literários pertence à mais perigosa das aristocracias; aquela que se reserva o direito de opinar ou de decidir sem que assuma a responsabilidade de seus pareceres ou resoluções. 
Trata-se de votos ou sentenças, proferidas por autoridades em determinados assuntos, que se escudam no pressuposto de cultura adquirida nos bancos acadêmicos ou no trato cotidiano dos livros. Estas autoridades, revestidas da chancela legal, decidem questões que afetam o destino e a existência dos homens com um simples passar de olhos, uma inspeção superficial, ou uma informação indireta, ouvida através do relator."
CANNABRAVA, Euryalo. Teoria da decisão filosófica. Bases psicológicas da matemática, da linguística e da teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977, pp. 38-39.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Janet e o sentimento do triunfo


                                         V. O sentimento de triunfo
As ações humanas não têm sempre um fim tão sombrio quanto a tristeza e a angústia que examinamos por último. Elas terminam frequentemente pelo sentimento de alegria ou, mais precisamente, pelo sentimento de satisfação e gozo. Estes últimos são muito menos estudados que a angústia.
Como sempre, nossas observações, colocando-nos do ponto de vista da consciência, serão pouco precisas, menos precisas mesmo que para os sentimentos que estudamos ultimamente. À primeira vista, o sentimento de alegria apresenta-se como alguma coisa de vago; como para a angústia, não se a conhece a não ser que por comparações e por metáforas. Aproxima-se frequentemente a alegria do prazer, mas o prazer é ainda menos preciso que a dor, que podemos ao menos compreender como uma ação de distanciamento. Declara-se às vezes, todavia, que o prazer é fácil de reconhecer, que ele é preciso, e que corresponde muito exatamente a um estímulo da pele, a uma cócega. Produzir tal hipótese parece-me bem audacioso: é ousado admitir que uma simples cócega superficial na pele engendre o sentimento de prazer; e, aliás, a cócega é o início o arranhão, que engendra dor.
De minha parte, tenho que a palavra prazer é um termo vago que se aplica em muitas ações não tendo senão que um ponto em comum: todas essas ações são opostas à reação à dor; são atos de aproximação e de introdução, como os atos de alimentação ou os atos sexuais, ao invés de reações de afastamento. 
Como sempre, em nos colocando do ponto de vista da consciência, não chegamos a nada de muito preciso. Segundo nosso método, prosseguiremos examinando os fenômenos viscerais e intelectuais que parecem acompanhar o gozo. 
Esses fenômenos são sempre quase os mesmos que nos sentimentos precedentes. Há, todavia, alguns particulares, muitos curiosos, tocando a circulação e a respiração. 
Para a circulação, observam-se fenômenos de vasodilatação e de vasoconstrição. Na tristeza, os fenômenos mais frequentes são de vasoconstrição; ao contrário, aqueles de vasodilatação são mais frequentes na alegria.
Dumas fez interessantes experiências sobre alterações no número de glóbulos sanguíneos: na tristeza o número de hemácias aumenta; ele diminui a na alegria (quatro milhões e mais na alegria; cinco milhões e mais na tristeza). Esses experimentos se relacionam aos da vasoconstrição. O sangue é mais concentrado nos vasos. Infelizmente essa observação não é geral. Assim Binet, em suas obras, nota frequentemente fenômenos opostos.
Com relação à respiração, na tristeza, há frequentemente exagero, aprofundamento do tórax, como na alegria.
Eu creio tratarem-se aí de fenômenos relacionados a condutas elementares. Na tristeza detém-se muito frequentemente a ação, enquanto na alegria há agitação, e os fenômenos viscerais são a consequência do aumento ou da diminuição do movimento. Por exemplo: na agitação, o calor sanguíneo vai dos vasos em direção à pele; do mesmo modo, quando se está triste, faz-se esforços, malgrado a imobilidade, e infla-se o tórax. Em todos os casos as teorias viscerais não dão resultados precisos. 
Como sempre, não se pode fazer um estudo desses fenômenos a não ser pela consideração da conduta que eles simplesmente resumem.
Pergunte-se primeiro: que gênero de ação se faz? A resposta é fácil: trata-se de não fazer mais nada e a ação está terminada. A fadiga e o esforço eram condutas do começo e do desenvolvimento da ação; a angústia e o gozo são condutas do fim da ação. E esta questão do fim da ação é muito importante: é ela que ocasiona o mais frequentemente problemas no indivíduo. O gozo nos conduz ainda uma vez a esse fenômeno.
É, dizemos nós, um fim, um fim definitivo. Na fadiga, temos apenas uma parada, uma pausa; nós não renunciamos à ação, nós conservamos o desejo. Ao contrário, na angústia e na alegria, acabou, terminou de vez, e mesmo ainda mais na alegria que na angústia, porque, na angústia, o estímulo, não vencido, subsiste, enquanto, no gozo, não há mais estimulação, não há mais nada. 
Mas então, se o gozo é um fim da ação, ele se aproxima da angústia. E bem, sim: nossa linguagem, que é a expressão de nossa conduta, é uma linguagem bem mal feita; o conjunto de todos os verbos de um dicionário é um tratado de psicologia elementar, mas um tratado mal fabricado: os homens têm feito mesmo uma má classificação dos sentimentos. Pensa-se frequentemente que a angústia e a alegria correspondam a duas ações opostas. A menor observação, sobretudo nos casos patológicos, nos leva a refletir sobre esse ponto: há entre todos os doentes quase simultaneamente exagero de um ou outro sentimento? Eles passam de um extremo a outro com grande facilidade. Kroepelin, em particular, insistiu sobre esse fato e mostrou que alguns indivíduos alternam constante e facilmente os dois fenômenos.
É que, em ambos os casos, se trata de um termo radical da ação que separa esta última de todo o resto da vida, termo quase absurdo, aliás, quase patológico, porque ninguém pode dizer que, definitivamente, uma ação teve termo: é preciso sempre procurar ainda, trabalhar sempre, ir sempre adiante.
Os dois termos angústia e alegria aproximam-se, pois, pelo seu exagero. Como, se isso é assim, um termo radical e definitivo pode implicar, na angústia e na alegria, em consequências tão opostas?
Aqui intervém o problema tão importante da repartição de forças psicológicas. Podemos comparar o homem a um pequeno banco. Ele recebe capitais e os cede para fora (aliás, o banco, como todas as instituições humanas, é apenas uma imitação do trabalho da natureza na pessoa humana). O problema que nos ocupa chama-se, em termos técnicos, a questão da arbitragem, do emprego de capitais. Quando se têm capitais é preciso fazer alguma coisa com eles. Empregamos em certa direção muitas forças espirituais, muitos esforços acrescentados a nossas tendências naturais. Que fazer agora desses capitais? É no emprego desses capitais que o gozo se diferencia da tristeza.
Na angústia, o emprego dos capitais se faz no “medo da ação”. No gozo, esse emprego de capitais se faz por uma conduta particular que chamaremos de “triunfo”. Na angústia, não somos livres para fazermos o que quisermos: temos uma fortuna, mas submissa ao reinvestimento legal. Primeiro é preciso deter a ação primitiva, perigosa, culpável ou sacrílega, e essa brusca parada demanda esforço. Além disso, o estimulante não desapareceu. Se, para dizer a verdade, pode-se mudar a ação, a nova ação ainda deve responder a esse estímulo. Se, por exemplo, fracassamos em um exame, é preciso prepará-lo outra vez ou preparar uma nova carreira. Os atos que devemos praticar são comandados pelas circunstâncias, e essas circunstâncias são quase sempre entediantes.
Ao contrário, a conduta que se deve seguir no triunfo pode se caracterizar em uma única palavra: “liberdade”, e esse caráter é essencial.
Dai uma soma em dinheiro a uma criança pequena. “Tome, pequeno, eis vinte francos. Tu irás à Larousse e comprarás um dicionário.” Você acredita que a criança ficará contente? Nem um pouco. Diga-lhe, ao contrário: “Tome, pequeno, eis vinte francos. Faze deles o que quiseres.” A criança ficará contente, saltará de alegria. Possuir a força, possuir a fortuna e poder fazer com isso não importa o que, eis o que todos desejamos, eis o que nos torna felizes.
Mas por que desejamos fazer não importa o quê? Isso se relaciona, na minha opinião, a toda uma conduta do espírito que é muito pouco conhecida e que vou tratar de expor resumidamente. Nosso espírito se compõe de uma quantidade de mecanismos que querem todos mais ou menos funcionar. Eu digo mais ou menos. As tendências são mais ou menos boas. Algumas funcionam em déficit: são más tendências que conduzem a uma diminuição de força e de vitalidade. Outras, ao contrário, são muito boas: eles tem sempre forças de sobra e seus gastos não nos esgotam. Por que isso? É que os bons organismos têm o hábito de bem se nutrir. Desde que estejam vazios, se preenchem novamente. Vemos assim caixas sempre vazias e caixas sempre cheias. É vantajoso servir-se destas últimas. Se elas estão sempre cheias não servem; se são empregadas, enchem-se indefinidamente. Sirvam-se das caixas cheias, pois elas pagam mais. Elas têm um funcionamento vantajoso que é muito importante para a saúde do espírito.
Vejam, por exemplo, uma criança que se deseja que aprenda a ler ou a escrever. O funcionamento dessas tendências é muito difícil quando elas se põem a correr, a quebrar tudo, é extremamente proveitoso: deixe a criança fazer de suas forças aquilo que ela quiser. Termine a lição e feche o livro. Vocês farão funcionar as tendências vantajosas da criança, que aspira apenas isso, desde que tenha liberdade. A criança não deixará de correr, de brincar, de jogar, de dar cambalhotas, e não há nada melhor para ela.
Em resumo, a detenção da angústia  é a utilização imediata e em uma direção obrigatória de forças sob uma forma tediosa; a detenção do gozo é a utilização livre de forças em uma circunstância fácil e vantajosa.
Faz-se, pois, movimentos dos membros para testemunhar alegria, colocando assim em jogo tendências mais fortes do ser, as tendências primitivas: grita-se, canta-se, pula-se, etc. Mas tais ações terminam também por se organizarem: o próprio triunfo se torna uma tendência sistemática. Veja-se o que acontece depois de uma grande guerra. Todo processo do triunfo é regrado de antemão. É preciso fazer os soldados passarem sob o arco do triunfo; é preciso soltar fogos de artifício sobre o Sena, depois é preciso comer e beber. Tente fazer alguma coisa que não corresponda à vontade comum. Tente, por exemplo, entrar tranquilamente em casa e ir para cama: você terá trabalho para dormir com o ruído e a música da rua.
O triunfo, livre em teoria, organiza-se, pois, na realidade, e é isso que aproxima a conduta do gozo daquela da angústia. Além disso, a ação sistematizada tem, no gozo, outro caráter que sempre me surpreendeu. Examinemos o que se passou depois da guerra. A guerra era cara. Não deveria, desde que teve fim, antes de mais nada deter as despesas? Todavia, fez-se exatamente o contrário. Fez-se uma festa que implicou em despesas com lampiões, iluminação da cidade, que sei mais ainda? Esse fenômeno é muito curioso. Ele traz despesas para o triunfo, porque é tão vantajoso que os homens procuram sistematizá-lo.
Na angústia, nos esforçamos por fazer o mínimo de despesas e, por esse lado, a angústia se aproxima da fadiga. Ao contrário, se é preciso aproximar o gozo de um dos sentimentos que acabamos de estudar, eu o aproximaria do esforço. No gozo, corre-se, grita-se, faz-se esforços e continua-se a despendê-los. É que não é fácil parar de imediato esse dispêndio. O esforço é um despesa. O triunfo deveria ser a parada do esforço, mas se é levado por aquilo que eu frequentemente chamo de “elã”, o elã de dispêndio contínuo.
Assim, no gozo existe ainda o esforço. Ultrapassa-se o obstáculo, vai-se mais adiante. As tendências favoráveis colocadas em jogo vão desenvolver a força e a saúde. A angústia esgota por despesas desnecessárias, o triunfo enriquece porque coloca em ação tendências felizes. Assim alguns exercícios, correspondendo a tendências mal construídas, esgotam o homem, enquanto outros, correspondendo a tendências bem construídas, e livres, e que se recarregam facilmente, o estimulam a prosseguir.
Todavia, aqui uma dificuldade se apresenta. Por que, ao fim de certas ações, o sentimento de triunfo nasce e não o de angústia?
Teoricamente a resposta seria simples: há sentimento de triunfo quando há sucesso; há sentimento de angústia quando há fracasso.
Mas, praticamente, o sucesso é ainda mais difícil de reconhecer que o fracasso: é a ab-reação, tal como a definimos em nossa última lição, é a conduta que modifica a estimulação exterior em sentido favorável. Quando começamos uma ação, formulamos de antemão sua conclusão, esta ab-reação. Por exemplo, quando nos apresentamos para um exame, pensamos no diploma. O sucesso será a transformação da fórmula teórica e verbal em uma ação real. O sucesso será a ab-reação total.
Entretanto, é raro obter o sucesso completo. O sucesso absoluto não existe, a não ser para crianças ou para os espíritos simples, que são insensíveis a uma multidão de estimulações exteriores novas. O sucesso é tanto menos nítido quanto o esforço está mais distante de terminar e quanto nossa vontade quer continuar. Sob qual signo, pois, reconhecer o sucesso? É preciso, diremos, que haja para isso uma modificação da ação. Se detivermos a ação porque ela caminha mal, a angústia chega com o reconhecimento. Se a ação caminha bem, é o triunfo. Mas a questão é saber se chegou o momento de deter o esforço. Isso é complexo, e leva a uma quantidade de erros que determinam as variedades do triunfo e do gozo.
Essas variações dependem  primeiro de ações anteriores. Escreve-se uma carta insignificante. O triunfo é pequeno. Ao contrário, se a ação é colocada em jogo por tendências violentas, produzirá um grande gozo. É o que se produzirá, por exemplo, na detenção, pelo triunfo, das tendências sexuais. 
As variações dessas manifestações do triunfo dependem igualmente da própria força dos indivíduos. Indivíduos fracos não triunfam muito. Há pessoas que não sabem gozar do mesmo modo como elas não sabem sofrer. 
Enfim, o fenômeno do triunfo, vantajoso por ele mesmo, conduzirá às vezes a gastos inúteis. O gozo será caracterizado por um desejo: quer-se gozar outra vez, porque isso produz felicidade. Como de outra parte as circunstâncias são difíceis de apreciar, teremos uma segunda categoria de indivíduos: aqueles que gozam o tempo todos. Eles detêm sem cessar a ação que acabam de começar, para ter triunfos. Eles acreditam sempre obter sucesso.
Esta conduta organizada dá nascimento a um novo fenômeno: a brincadeira, o prazer, a comédia da ação. Sabe-se o papel considerável que o brinquedo desempenha na vida dos homens, pois ele está na origem de todas as artes. No fundo, o que é a brincadeira, os jogos dos animais grandes e pequenos, dos elefantes e dos homens também? Karl Groos definiu-o como uma preparação para ações importantes. O gato que brinca com uma folha ou com um novelo de lã se exercita para poder lutar com ratos. É a teoria dos jogos pelo exercício. Não nego a exatidão dessa observação. Mas direi que se utilizam os jogos existindo como exercício, e que este exercício é uma exploração da natureza primitiva dos jogos.
Os jogos parecem-me uma exploração da ação triunfal. Uma conduta fanfarrona que tira vantagem de triunfos imaginários. Escolhe-se para brincar ações que não oferecem dificuldade. Ora, aquilo que torna a ação difícil sobre esta pobre terra é que estamos no mundo real e, por isso mesmo, penoso. Nos jogos, suprime-se a ação da realidade. Faz-se o simulacro do exame diante de um examinador que não existe ou que aceitará, com certeza, algumas bobagens que dissermos. Será bem mais divertido: está-se seguro de obter o diploma.

Tradução da parte V do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais

JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.


domingo, 23 de fevereiro de 2020

Mesas girantes, espiritismo e sociedade no século XIX

O espiritismo, que se desenvolveu intensamente na França durante o século XIX, é examinado em detalhes nesta obra. De notar que, em 1850, aquilo que não passava de uma curiosidade, rapidamente assumiu proporções bem maiores, especialmente depois que um dos principais atores dessa história, Lyonnais Hippolyte Rivail, cujo pseudônimo céltico era Allan Kardec, difundiu o movimento no mundo inteiro, notadamente no Brasil. 
Durante muito tempo, afirma Cuchet (2012, p. 13), o espiritismo não reteve a atenção dos pesquisadores, que preferiam evitar um tema tido por alguns como supersticioso e mesmo como uma aberração mental pouco digna de ser elevada à categoria de objeto científico. Nessa linha, Pierre Larousse, em seu Grand Dictionnaire Universal editado em 1865, chegou a escrever que havia lugar não para apreciar o espiritismo, mas para explicá-lo, assinando-lhe uma colocação no quadros das doenças mentais. O cenário mudou, todavia, quando historiadores, sociólogos, etnólogos e antropólogos debruçaram-se sobre o tema na França, tirando o assunto da sombra, em especial no campo da história das religiões, bem como história das técnicas, de mulheres, de cidades, psicologia e morte. Enfim, uma grande massa de trabalhos que pode ser dividida em três grandes grupos. Primeiro, a própria literatura espírita; depois, uma corrente etno-antropológica, com destaque para Roger Bastide que, no caso brasileiro, tem a vantagem de possibilitar a observação in loco de um espiritismo vivo e dinâmico, bem mais tímido  na Europa; em terceiro lugar, as produções ligadas à história cultural em sentido amplo, que analisa o problema a partir dos mais variados pontos de vista. 

CUCHET, Guillaume. Les voix d'outre-tombe. Tables tournants, spiritisme et société au XIXe siècle. Paris: Seuil, 2012.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

O LIVRO DOS CEM ANOS DO LABORATÓRIO DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL DA ESCOLA NORMAL SECUNDÁRIA DE SÃO PAULO 1914-2014

Por que não? Eu e Rogério Centofanti conversamos hoje e decidimos liberar o PDF do livro que escrevemos juntos em 2014. Foi uma pesquisa instigante feita sobre fatos históricos para lá de conhecidos, ao menos do ponto de vista da chamada história da ciência. Por se tratar de uma obra comemorativa que tinha por objetivo não deixar em branco a passagem de um século sobre um acontecimento, resolvemos revisar fontes primárias, procurando redescobrir todo aquele acontecer no seu tempo mesmo, retratando lugares e personagens e usando, inclusive, imagens para isso. Impresso em tiragem pequena, foi presenteado a amigos e estudiosos. Na abertura, o Prefácio de Maria do Carmo Guedes, do Núcleo de História da Psicologia — PUC/SP, merece destaque e toda gratidão dos autores. De referir também o artigo de Rodrigo Lopes Miranda[1] que, com atenta leitura, soube tão bem ressaltar os aspectos ligados à memória que se liga a atores que viveram em certo espaço e tempo. Como diz Rogério, em que pese o direcionamento e os objetivos que os autores procuram dar aos seus livros, estes, na verdade, têm um destino. Seguem um caminho próprio, tendo por guia o imponderável.


[1] Miranda, Rodrigo Lopes. (2015). A ESCOLA NORMAL SECUNDÁRIA DE SÃO PAULO E SEU LABORATÓRIO DE PSICOLOGIA. Educação em Revista31(4), 367-373. https://doi.org/10.1590/0102-4698144287



terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Uma palavra sobre Hobbes e o Leviathan


O pacto entre os homens, ao contrário do que ocorre com os animais, seria artificial, pensava Hobbes, concluindo daí a necessidade de um estado de sujeição para que o pacto fosse duradouro. Um poder que inspirasse o medo teria surgido a partir dessa necessidade, originando a religião e o Estado. Sujeição, reverência, medo que se equilibram pela imaginação de inspiração religiosa. O Leviatã se ergueria assim, a partir do artifício, sujeitando o homem que se torna, ele também, homem artificial.

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror. Quatro ensaios de iconografia política. Trad. de Federico Carotti, Joana Angélica d’Avila Melo e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

sábado, 25 de janeiro de 2020

Figuras do eu


"Fabricação das figuras do eu.
Escrever um texto autobiográfico, redigir um jornal, é, antes de tudo, construir uma subjetividade, figuras do “si” — e, partindo do “eu”, do “si” em relação a outrem. Os rascunhos, os materiais de origem são o lugar por excelência onde o pesquisador pode observar os processos e as modalidades de fabricação do sujeito no espelho da escrita — a memória não sendo necessariamente sinônimo de exatidão: experimentações, tentativas, processos de controle, modulações referenciais, transações com a linguagem e suas limitações. A construção de uma postura, a escolha de um dispositivo enunciativo pode ser também função do ato de leitura, da colocação em perspectiva de um leitor, fosse ele, em um primeiro tempo, o próprio autor. À atividade escritural propriamente acrescenta-se o jogo das informações para e peritextuais que por vezes garantem aí sozinhas a leitura autobiográfica." (VIOLLET, p. 42)

Viollet C., « Petite cosmogonie des écrits autobiographiques. Genèse et écritures de soi », Genesis, manuscrits, recherche, invention, n°16, 2001, p.37-53.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Sobre René Worms


Sociólogo francês nascido em Rennes em 1869, segundo o Larousse du XXe. Siècle, foi auditor do Conselho de Estado, ensinou Direito em Caen (1897-1902) e no Instituto Comercial (1902). René fundou o Instituto Internacional de Sociologia. Suas obras filosóficas são: Précis de philosophie Elements de philosophie scientifique (1891), um estudo sobre a moral de Espinoza, Morale de Spinoza (1892). Além de diversas obras sobre Direito e economia política, ele escreveu uma Philosophie des sciences sociales.
Sob o título de “Organismo e Sociedade” (1896, junho 26, p. 2), aparece, no conservador Le Constitutionnel : journal du commerce, politique et littéraire, menção à obra de mesmo nome então recentemente publicada por René Worms, diretor da Revue Internationale de Sociologie. Tratava-se, segundo a notícia, de livro que teria causado surpresa no mundo intelectual, visto que ali o autor teria desenvolvido uma tese bizarra, ao comparar a sociedade a um corpo humano, extraindo daí um paradigma anatômico que serviria para demonstrar a identidade entre o corpo social e o individual. A psicologia coletiva é também mencionada como “lembrando muito exatamente a psicologia do ser isolado” (id., ibid.), tudo demonstrado em uma obra cujo método, descrito como perfeito, e cujo raciocínio, tido por rigoroso, às vezes pareceria desconcertante, mas “apenas para aqueles que temem um paralelo entre as unidades do corpo social com as células do corpo humano . . . ” (id., ibid.). O articulista identifica aí uma arma valiosa colocada à disposição do coletivismo moderno, conduzindo o leitor pelos labirintos da sociologia, aliás, — afirma —, “tão imperfeitamente iluminados pelos Fouillé, os Spencer, os Durkheim” (id., ibid.). Outra significativa ilação se encontra na conclusão do artigo, que entende como dever dos sociólogos barrar a ascensão “dos pseudo socialistas que, embalados em utopias, querem tomar de assalto o poder” (id., ibid.), algo que viria em desfavor de povos e repúblicas.

Organismo e sociedade (1896, junho 26). Le Constitutionnel : journal du commerce, politique et littéraire, ano 82, n. 29.794, Paris, p. 2.
Mais sobre René Worms em: 
Revue des livres. Tarde, Les Transformations du Droit, par René Worms. Extraído da Revue internationale de Sociologie, 1º. ano, n° 1, janeiro-fevereiro de 1893, p. 101-104. Disponível em Les Classiques des Sciences Sociales. Tradução: Maristela Bleggi Tomasini.

Como citar esta postagem estilo APA

Tomasini, M. (2020). Sobre René Worms. [Blog] Memória Social e Bens Culturais. Disponível em: https://bensculturais.blogspot.com/2020/01/sobre-rene-worms.html [Acesso em: 22 jan 2020].

domingo, 19 de janeiro de 2020

Tatuagem entre prostitutas

Segundo Lombroso e Ferrero (1896, p. 356), em estudo que realizaram sobre a mulher criminosa, a tatuagem figurativa seria rara e muito simples entre as prostitutas. Todavia, em certas ocasiões, quando ela aparece, estaria frequentemente associada a objetivos pornográficos, especialmente entre as classes mais ínfimas.
A figura, que aparece na obra, mostra exemplos de tatuagens colhidas entre prostitutas.

LOMBROSO, C; FERRERO, G. La femme criminelle et prostituée. Paris: Alcan, 1896.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

REVISTA VIDA BRASIL

Solidão incomoda

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Solidão incomoda, é verdade. Mas, seguramente, não aos solitários. Incomoda aos outros. Gente que, não conseguindo aceitar o fato de que há quem prefira ficar só, procura com inacreditável persistência inventar mil motivos para o que entendem como uma espécie de patologia social daquele que, sim, gosta de ficar sozinho. Inclusive no Natal. Inclusive no Ano Novo. Inclusive no próprio aniversário. Inclusive quase sempre.

Solidão incomoda


Bem, há quem duvide. Parecem convictos de que o solitário sofre. Ou porque merece ou porque se ressente do mundo e, egoísta, isola-se. São os que se ofendem com a solidão dos outros. Ficam irritados pelo fato de alguém não se encantar diante da sedutora pirotecnia social que se abre ao tal mundo melhor e não parecer nem um pouco maravilhado com o ruidoso espetáculo das cores brilhantes da meia-noite. Sentem-se pessoalmente hostilizados com uma escolha que lhes é incompreensível, embora alheia. E, como se trata de gente que faz dos próprios valores a medida do mundo, o melhor é deixá-los crer no pior acerca de nós. Aliás, considero uma sorte tremenda ser vista por gente assim, no mínimo, como uma pessoa esquisita e excêntrica. Gente mais chata! Pensam que são pessoas tradicionais quando, na verdade, cultuam apenas um conservadorismo rançoso que coroa uma visão de mundo rasa e simplista. Jamais entenderiam que as verdadeiras tradições são muito mais profundas do que a superficialidade de gestos copiados e repetidos. É mesmo bem o contrário do que eles pensam: apenas aquele que é seguro de sua pertinência no mundo, seguro de sua própria identidade, de sua originalidade irredutível, — como diz Gabriel, um querido amigo meu —, é que pode, sim, preferir a solidão.
Mas nem todos duvidam. Há os que se explicam a solidão do próximo. Quando afirmo que solitários não apenas gostam, mas até preferem a solidão, eles discordam veementemente. Alguns entendem que se trata de conformismo. Por sua lógica concluem que o coitado que ficou sozinho não tinha para onde ir. Mostram-se mesmo penalizados e querem parecer compreensivos. Eles tentam sinceramente entender a razão pela qual alguém opta por ficar em casa, mesmo podendo estar na praia, por exemplo, jogando-se contra sete ondas, vestindo branco por cima e amarelo por baixo, espremendo-se na multidão, comendo lentilhas, bebendo, apreciando os fogos! Como assim não gostar de tudo isso? Daí, — por respeito e não sem algum custo emocional —, insinuo que vou para algum lugar que não posso revelar. Dou a entender que tenho um encontro e peço discrição. Pronto. É como mágica. Sempre funciona. Trocamos olhares cúmplices e tudo se resolve da forma mais educada possível.

Mas entre os que duvidam e os que pensam que explicam a solidão dos outros, há ainda os raros simpatizantes que fazem o mesmo ou que certamente o fariam se pudessem. Aqueles que, enfim, invejam o solitário. Nem todos podem se dar ao luxo da solidão. O mundo tem seus tentáculos. Ele não é apenas cheio de gente, mas ainda repleto de significados, entremeado de símbolos. Há uma semiologia comportamental, um dever ser que funciona à maneira do trânsito: com sinais abertos, fechados, multas e desastres. O solitário é aquele que vai pelos atalhos, quando não move montanhas, não necessariamente pela fé. Afinal, obstáculos se contornam ou se explodem mesmo. Assim como para seguir em relativa segurança em meio ao trânsito é preciso conhecer os sinais, para viver socialmente também é preciso compreender tanto as regras gerais como ainda perceber, individualmente, os demais. Tarefa, aliás, desafiadora. Compreender o mundo e observar os outros. Inspirar-se até em tantos personagens que podem ser muitas vezes encantadores, outras vezes, até desconcertantes. A fauna e a flora social vicejam por séculos e mais séculos sob o firmamento desse mundo que, recentemente, parece que não teve outra opção que não a de se achatar. Eu mesma não esperava viver para ver a Terra ficar plana. Mas parece que ficou. Isso, entre outras novidades, ainda tem sobre mim um efeito impactante que, felizmente, a solidão abranda.
E não se enganem. Só porque o solitário consegue perfeitamente bem e, aliás, com algum sucesso, circular por aí, tal não significa que ele prefira viver socialmente. Solidão é escolha ou deverá ser lida como abandono. Solidão é algo que se conquista, e é preciso investir pesado para obter esse habeas corpus, verdadeira alforria da qual nasce a liberdade, condição criadora não compartilhável, berço da inspiração.

Experimentar o silêncio e a solidão, homenagear o tédio, mesmo quando o mundo lá fora festeja qualquer coisa, é estar perto de si. Escutar-se. Escrever e ler. Porque escrever é, por certo, socializar-se no tempo e no espaço, muito além do bairro, da paróquia, da vizinhança. É compartilhar certezas e confessar incertezas. Ler é deliciar-se com a presença de outros que trazemos para muito perto de nós. Há ainda a música. E assim, aos poucos, porta trancada atrás da gente, todo o espaço da casa sossega. As janelas fechadas deixam passar apenas o mínimo de claridade. As luzes indiretas das luminárias antigas encarregam-se dos detalhes. O relógio parado não bate mais nem à meia-noite nem ao meio-dia. Os livros, todos e cada um, desfilam suas lombadas, e eu hesito sobre com qual deles vou passar as próximas horas mágicas.

Sim, porque é feriado. O mundo lá fora está ocupado com comida, bebida, roupas, ruídos, a loteria, as simpatias, os relógios, o branco, o amarelo, os santos e os orixás, as dívidas, os créditos, as promessas, o grande amor que não era o verdadeiro e o próximo que virá, para sempre, no ano que vem. É preciso ser visto feliz e sorrindo na companhia dos amores e dos amados. A sagrada família precisa se mostrar unida. Que assim seja. Enquanto eles se embriagam dessa felicidade ostensiva, eu, sozinha, me vejo cercada do requintado conforto que pude honestamente conquistar. Honestamente, porque tudo aqui é de verdade: a minha Coca Zero estocada aos litros para que eu não precise sair por pelo menos 48 horas, Balzac na saleta em companhia de Maupassant que já despertam do sono eterno para terem comigo por horas de leitura. Há o café especial para quando este calor aplacar e também alguma comida na geladeira para quando der fome. Há também tintas, lápis de cor e nanquim para que eu possa brincar de rabiscar desenhos inacabados que um dia terei outra vez a paciência de terminar. Enfim, o perfeito kit de sobrevivência para que eu consiga, mais uma vez, chegar ilesa ao ano que vem.





Autor: Maristela Bleggi Tomasini